Cambridge, Massachusetts - Um fragmento de papiro escrito na língua copta no século IV é identificado por uma historiadora especialista em cristianismo antigo da Faculdade de Teologia de Harvard e contém uma frase nunca observada em fragmentos de escritura sagrada: "Jesus disse a eles: 'Minha esposa...'".
O fragmento de papiro é menor que um cartão de visita e, em um dos lados, a escrita desbotada em tinta preta, legível com lente de aumento, preenche oito linhas. Logo abaixo da linha afirmando que Jesus tem uma esposa, está um segundo trecho de frase polêmico, afirmando presumivelmente que: "ela poderá ser minha apóstola."
A historiadora Karen L. King - autora de diversos livros sobre revelações do evangelho e primeira mulher a ocupar a mais antiga cátedra dotada de fundos do país, a cátedra Hollis de teologia - anunciou a descoberta recentemente em um congresso internacional de especialistas em copta ocorrido em Roma.
A procedência do fragmento de papiro é um mistério e o proprietário pediu para permanecer anônimo. Até há pouco tempo, King havia mostrado o fragmento apenas a um círculo reduzido de papirólogos e especialistas em linguística. O grupo chegou à conclusão de que é grande a probabilidade de o documento ser autêntico. Contudo, ela e seus colaboradores afirmam desejar que mais especialistas dessem sua opinião, talvez derrubando suas conclusões.
Mesmo com muitas perguntas sem resposta, a descoberta pode reacender o debate em relação ao fato de Jesus ter sido casado, de Maria Madalena ter sido sua esposa e de ele ter tido uma "apóstola". Esses debates, afirmam os estudiosos, datam dos primeiros séculos do Cristianismo. Contudo, eles são relevantes atualmente, uma vez que o cristianismo global vem alterando a posição da mulher no clero e os limites do casamento.
Essa é uma discussão acalorada principalmente dentro da Igreja Católica Romana, na qual, apesar dos pedidos de mudança, o Vaticano reiterou a instrução de que o sacerdócio não pode ser permitido para mulheres e homens casados por causa do modelo estabelecido por Jesus.
King concedeu entrevista recentemente, quando mostrou o fragmento de papiro, encerrado em uma placa de vidro, a repórteres do The New York Times, The Boston Globe e Harvard Magazine, em seu escritório, no sótão do edifício da Escola de Teologia de Harvard.
A pesquisadora advertiu diversas vezes que o fragmento não deve ser interpretado como comprovação de que Jesus, a personalidade histórica, tenha sido realmente casado. O texto provavelmente foi escrito alguns séculos após a morte de Jesus e a literatura cristã historicamente confiável não faz menção ao assunto, afirmou.
Mas essa descoberta é empolgante, afirmou King, pois é a primeira declaração da antiguidade de que se tem conhecimento a mencionar Jesus falando de sua esposa. O fragmento fornece mais evidências de que entre os primeiros cristãos discutia-se vivamente se Jesus era celibatário ou casado e se seus seguidores deveriam seguir um ou o outro estilo de vida.
"Esse fragmento sugere que entre parte dos primeiros cristãos era tradição crer que Jesus tinha sido casado", afirmou. "Já sabemos que havia controvérsia no século II em relação ao fato de Jesus ter sido ou não casado, apoiada pela discussão sobre se era ou não recomendado aos cristãos casar e manter relações sexuais."
King conheceu pela primeira vez o que chamou de "Evangelho da esposa de Jesus" ao receber o e-mail de um colecionador particular em 2010, pedindo a ela que traduzisse o documento. Especialista em literatura copta, a pesquisadora de 58 anos escreveu livros sobre o evangelho de Judas, o evangelho de Maria Madalena, gnosticismo e a mulher na antiguidade.
O proprietário possui uma coleção de papiros em grego, copta e árabe, e não deseja ter seu nome, nacionalidade, nem localização revelados porque "não quer ser incomodado por pessoas interessadas em comprar o documento", afirmou King.
Não se sabe quando, onde, nem como o fragmento foi descoberto. O colecionador o adquiriu em 1997 de um alemão, seu antigo proprietário, em meio a um lote de papiros. Junto com ele havia um bilhete escrito à mão em língua alemã que fazia menção à citação de um professor de egiptologia de Berlim afirmando que o fragmento é o "único exemplar" de texto em que Jesus afirma ter uma esposa.
O proprietário levou o fragmento até a faculdade de teologia em dezembro de 2011 e o deixou com King. Em março, ela o levou em sua bolsa vermelha para Nova York, a fim de mostrá-lo a seus colegas papirólogos Roger Bagnall e AnneMarie Luijendijk. Bagnall é diretor do Instituto de Estudos do Mundo Antigo da Universidade de Nova York e Luijendijk é professora adjunta de religião na Universidade Princeton.
Eles examinaram o fragmento com o uso de lentes de ampliação acentuada. Ele é muito pequeno - mede apenas 4 centímetros por 8. As letras desiguais e borradas foram escritas à mão por um amador, o que não era incomum na época em que muitos cristãos eram pobres e estavam sendo perseguidos.
O texto foi escrito em copta, língua egípcia que usa caracteres gregos - mais precisamente, na versão tebaica, um dialeto do sul do Egito, afirmou Luijendijk em uma entrevista.
O que convenceu os pesquisadores sobre a grande probabilidade de o texto ser autêntico foi a tinta desbotada sobre as fibras do papiro e os vestígios de tinta aderida às fibras dobradas das bordas rasgadas. A tinta está tão desbotada no lado de trás que é possível visualizar somente essas cinco palavras e uma delas apenas parcialmente: "minha mãe", "três" e "adiante não importa qual".
"Ele seria impossível de falsificar", afirmou Luijendijk, que contribuiu com o artigo de King.
Bagnall argumentou que o falsificador teria que ser especialista em gramática, caligrafia e pensamento copta. A maioria das falsificações que Bagnall já encontrou não passava de linguagem inarticulada. Além disso, se o documento fosse uma falsificação com a intenção de causar comoção ou de enriquecer alguém, por que teria permanecido oculto durante tantos anos?
"É difícil criar um enredo absolutamente plausível, que seria a base para a falsificação de um documento assim. O mundo não está exatamente repleto de papirólogos desonestos", afirmou Bagnall.
De formato retangular, o fragmento teve todos os lados cortados, o que faz com que os textos que completam as frases em cima, em baixo e dos lados, estejam faltando - provavelmente ele foi dividido por algum comerciante interessado em maximizar seus lucros, afirmou Bagnall.
Por isso, a maior parte do contexto está faltando. Contudo, King ficou surpresa ao ver frases como "minha mãe me deu a vida" e "Maria merece isso", que se parecem com fragmentos dos evangelhos de Tomé e Maria. Especialistas acreditam que esses evangelhos foram escritos no final do século II e traduzidos para a língua copta. King supõe que o texto desse fragmento também foi copiado de um texto em grego do século II.
O significado das palavras "minha esposa" é inquestionável, afirmou King. "Essas palavras não têm outro significado." O texto que vem depois de "minha esposa" foi cortado.
King não datou a tinta usando o teste por radio-carbono. Para fazer isso, afirmou a pesquisadora, seria necessário raspar uma quantidade muito grande de material, o que destruiria a relíquia. A pesquisadora planeja submeter a tinta à espectroscopia, que poderá determinar a idade aproximada analisando sua composição química.
King apresentou seu artigo no periódico The Harvard Theological Review, que pediu a análise de três especialistas. Dois deles questionaram a autenticidade do texto. Contudo, eles tinham observado apenas fotografias de baixa resolução do fragmento e desconheciam o fato de papirólogos já terem visto o objeto real e decidido pela autenticidade, afirmou King. Dentre esses dois, um questionou a gramática, a tradução e a interpretação.
Destacado linguista de copta da Universidade Hebraica de Jerusalém, Ariel Shisha-Halevy foi consultado e afirmou por e-mail em setembro: "eu acredito, com base na linguagem e na gramática, que o texto é autêntico".
The New York Times
Fragmento de papiro faz referência à esposa de Jesus
Descoberta reacende debate sobre as relações de Cristo e Maria Madalena
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