Ao longo de uma viela estreita conhecida como Khadar Wallah, muçulmanos e hindus de casta baixa viveram lado a lado por anos, unidos pela pobreza, se não pela religião. Ainda assim, muçulmanos como Murtaza Mansuri têm notado uma mudança nos últimos tempos. Seus vizinhos estão se dando melhor.
Muitos dos dalits, hindus pertencentes a uma casta baixa que já foram conhecidos como intocáveis, conseguiram empregos públicos, vagas em universidades públicas, oportunidades que significam salários estáveis e casas melhores. E para Mansuri a razão é clara: a ação afirmativa de reservar cotas para hindus de castas baixas, uma política conhecida na Índia como reserva e que não está explicitamente disponível para os muçulmanos.
- Nós estamos atrás deles - afirmou Mansuri, que vive do conserto de riquixás, em uma tarde recente. - A reserva é essencial para os muçulmanos. Se nós não tivermos educação, continuaremos atrasados, enquanto os outros não param de progredir.
Por décadas, a questão da ação afirmativa para muçulmanos foi politicamente delicada na Índia. Muitos oponentes, incluindo os grupos hindus de direita, argumentam há bastante tempo que políticas de ação afirmativa baseadas em religião violam a constituição indiana e são contrárias à identidade secular do país. Eles afirmam que as cotas devem ser estritamente reservadas para os grupos que foram discriminados ao longo de séculos em função de suas castas.
Mas esses argumentos têm sido constantemente contrariados por um inegável e preocupante subproduto do desenvolvimento democrático da Índia: os muçulmanos, enquanto grupo, foram deixados para trás no que diz respeito à educação, ao emprego e à situação econômica, em parte como resultado da constante discriminação da maioria hindu do país. Segundo um relatório pioneiro realizado pelo governo em 2006, os muçulmanos têm maiores chances de viver em aldeias sem escolas ou instalações médicas, e tem menos chances de conseguir empréstimos bancários.
Agora, a questão das cotas para muçulmanos emergiu durante uma recente eleição no estado de Uttar Pradesh, onde o vencedor, o partido regional Samajwadi, prometeu criar cotas em vagas de emprego e na educação para os muçulmanos, uma ideia originalmente levantada pelo Partido do Congresso Nacional Indiano. Ainda restam obstáculos políticos e legais e alguns muçulmanos não acreditam que os líderes terão vontade política suficiente para forçar a criação das cotas, mesmo que muitas pessoas as considerem justificadas e há muito tempo devidas.
- Nós também lutamos contra os ingleses pela liberdade da Índia - afirmou Hafiz Aftab, presidente da All-India Muttahida Mahaz, uma organização que organizou protestos em favor das cotas para muçulmanos. - Nós perdemos muitas de nossas pessoas mais brilhantes. Mas depois da liberdade, o governo não fez qualquer esforço para ajudar os muçulmanos.
Em Uttar Pradesh, o estado mais pobre e mais populoso do país, todos os tipos de casta e de religião da Índia estão presentes de forma intensa. Foi aqui que um dos atos mais marcantes de violência religiosa na Índia ocorreu em 1992, quando uma antiga mesquita foi destruída por ativistas hindus de direita que alegaram que ela havia sido construída no local do local de nascimento de Ram, a divindade hindu.
Os indianos de Uttar Pradesh também presenciaram a ascensão política das Castas Programadas, como são oficialmente denominados os dalits e outras castas "atrasadas". Até perder uma recente eleição, a dalit Mayawati (que utiliza apenas um nome) era a poderosa ministra chefe do estado e dominava Uttar Pradesh, utilizando sua posição para recompensar muitos de seus apoiadores com empregos, moradia e outros benefícios. Os dalits ainda são extremamente pobres e marginalizados em muitas partes da Índia, mas a intensa utilização do sistema de cotas de reserva e de outras políticas de ação afirmativa por Mayawati criou oportunidades para muitos dalits.
- Essas Castas Programadas eram as pessoas mais desfavorecidas social e economicamente em Uttar Pradesh - afirmou Aftab, em uma entrevista antes das eleições estaduais. - Agora eles são a classe dominante. Esse é o resultado de 64 anos de reserva.
Originalmente, as políticas de reserva da Índia foram regulamentadas durante a criação da constituição nacional como cotas para Castas Programadas e para grupos tribais. Ao longo dos anos, outras castas hindus foram adicionadas tanto em nível estadual quanto em nível nacional, à medida que diferentes grupos se manifestaram pela inclusão e os políticos viram a oportunidade de ganhar novos eleitores. A modernização da Índia estava regulamentando as castas, ao invés de eliminá-las.
- Na Índia, o aprofundamento da democracia não irá ocorrer pela eliminação dos limites entre as castas - afirmou Yogendra Yadav, importante cientista político em Nova Deli. - Eu vejo isso como o próximo passo da justiça social na Índia.
Boa parte dos muçulmanos da Índia é descendente de hindus de castas baixas que se converteram ao longo dos séculos, com frequência para escapar da situação de privação que era reservada aos dalits. Entretanto, essa ligação com as castas nunca desapareceu completamente, o que significa que uma hierarquia continuou existindo entre os muçulmanos na Índia. Duas comissões do governo tentaram incluir os muçulmanos "atrasados" no sistema de cotas utilizando a identidade de sua antiga casta hindu, juntamente com indicadores educacionais e econômicos.
Quatro estados do sul da Índia conseguiram estender alguns benefícios de ação afirmativa aos muçulmanos, ainda que não explicitamente segundo linhas religiosas, mas em outros lugares os muçulmanos foram amplamente excluídos. O relatório de 2006, conhecido como o relatório da Comissão Sachar, descobriu que muçulmanos que deveriam ter se qualificado para as ações afirmativas não estavam recebendo o auxílio, embora estivessem vivendo em uma situação de maior pobreza do que alguns grupos que recebiam o benefício.
- Nossa Constituição diz que não se deve fornecer a reserva em razão da religião - disse o mufti Julfiquar Ali, um líder muçulmano de Uttar Pradesh. - Mas, basicamente, a reserva foi dada em razão da religião. Um lavrador muçulmano não tem direito à reserva, mas um lavrador hindu tem. Carpinteiros hindus receberão a reserva, mas um carpinteiro muçulmano não.
Ao longo da viela de Khadar Wallah, muçulmanos e dalits expressaram opiniões completamente diferentes sobre a necessidade de se criar uma cota para beneficiar muçulmanos. Alguns muçulmanos duvidavam que os líderes políticos fossem cumprir a promessa e não sabiam se tal política poderia ser adaptada para realmente ajudá-los.
Mas Badruddin, um muçulmano idoso que usa apenas um nome, gostaria de receber o benefício. Segundo ele, as ações afirmativas haviam permitido que muitos hindus de casta baixa conseguissem empregos públicos que lhes garantiram estabilidade para que seus filhos pudessem continuar na escola. Em muitas famílias muçulmanas, argumentou, as crianças precisam abandonar a escola para ajudar com a renda familiar.
- As Castas Programadas estão se dando melhor do que nós porque têm empregos públicos - afirmou. - Quando você consegue um emprego no governo, você ascende.
Muitos hindus afirmaram que as cotas para muçulmanos eram desnecessárias e que elas iriam diluir ainda mais as raras oportunidades para os hindus de castas baixas.
- Sem a reserva, nós não teríamos progredido muito por causa da discriminação - afirmou o dalit Bohoran Lal, de 71 anos, acrescentando: - Eu não acredito que os muçulmanos estejam mais atrasados. Eles estão indo bem.
Mansuri, o mecânico de riquixás, abandonou a escola na oitava série, mas ainda é a pessoa que estudou mais em toda a sua família. - Nossa única fonte de renda era meu pai - afirmou, explicando porque ele começou a trabalhar.
Ele observou enquanto seus vizinhos dalit conseguiram empregos e vagas em universidades por meio de cotas que, com o tempo, trouxeram melhores empregos e salários. Ele apontou para as casas reformadas de alguns hindus de casta baixa, demonstrando o que as ações afirmativas podem trazer e o que as famílias muçulmanas têm dificuldade em conseguir. Ele afirmou que os muçulmanos também têm culpa, já que por muito tempo eles não forçaram seus filhos a ficarem na escola. Mas, segundo ele, isso mudou.
Sua própria casa foi recentemente reformada, com paredes lisas de concreto pintadas de verde brilhante, e ela é tão boa quanto as casas das famílias dalit no mesmo beco. Questionado sobre isso, Mansuri explicou que a casa era um exemplo de como sua família se beneficiou de um tratamento preferencial: Um agente entrou em contato com ele dizendo que os bancos estavam procurando emprestar dinheiro para os muçulmanos depois que o relatório da Comissão Sachar de 2006 detalhou a discriminação no setor bancário.
- Antes, se tivéssemos tentado, nós não teríamos conseguido um empréstimo.