Acordos com o Ministério Público Federal têm livrado do processo criminal muitos gaúchos que teriam recebido pagamentos indevidos do auxílio emergencial durante a pandemia. Publicada há dois anos pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI), série de reportagens mostrou pessoas que não se enquadravam nos critérios necessários recebendo o dinheiro que seria destinado ao público de baixa renda.
A Polícia Federal (PF) já concluiu 258 inquéritos sobre saques ilegais do auxílio emergencial no RS. Outras 130 investigações estão em andamento. São, basicamente, dois tipos de problemas os encontrados.
O mais comum é o crime que seria praticado pelos próprios beneficiários, que falseariam dados a respeito de suas condições financeiras. Empresários, funcionários públicos e outras pessoas teriam fraudado informações, de modo a obter parcelas de até R$ 600 que o governo federal destinava a quem ficou na penúria econômica durante a pandemia. Eles são suspeitos do crime de estelionato.
O outro tipo de estratagema detectado pela PF, mais raro, é praticado por quadrilhas, que teriam invadido bancos de dados para se apossar de informações confidenciais de possíveis beneficiários do auxílio. A partir disso, requisitariam o benefício, sem que os reais beneficiários sequer percebessem que tiveram seu nome usado para sacar o dinheiro. Pelo menos duas operações realizadas pela Polícia Federal no RS, a Yandex e a Segunda Parcela, identificaram centenas de saques feitos irregularmente e resultaram em 11 indiciados por estelionato e associação criminosa.
Ações
As autoridades adotaram procedimentos diferentes para os dois tipos de golpe. No caso de quadrilhas que furtam dados dos beneficiários, a PF identifica os suspeitos e recomenda que sejam processados. Já com relação ao grupo mais numeroso, o de cidadãos comuns que eventualmente exageraram na situação de penúria para sacar o benefício, a PF, o Ministério do Desenvolvimento e o Ministério Público Federal tentam estimular que o sujeito supostamente em situação irregular devolva o dinheiro recebido, explica o procurador da República Celso Três, que atua no Vale do Sinos e já deparou com muitas situações assim:
— Isso porque são milhões de casos desse tipo no país. Quando os valores são devolvidos, não ocorre o processo criminal e a questão se extingue judicialmente.
Em Sapiranga, por exemplo, 72 servidores municipais foram convidados pela prefeitura a devolverem o valor sacado (o auxílio não contemplava funcionários públicos).
— Cerca de 30 não foram localizados, outros alegaram que eram homônimos. Mas a maioria devolveu, após pedido da Procuradoria da República. Alegaram que não sabiam da irregularidade. Vamos ver se ocorrerão punições administrativas — informa a procuradora-geral da prefeitura de Sapiranga, Míriam Monteiro.
Nas Missões, o procurador da República Osmar Veronese diz que tem estimulado que o beneficiário irregular pague cerca de 10 vezes o valor sacado. A maioria aceita, para não ser processado criminalmente.
O MPF não tem um levantamento de quantos acordos foram feitos no Rio Grande do Sul.
Devoluções
Um dos casos que resultou em acordo é da dona de casa Rosângela de Freire Melo, de Espumoso. Apesar de ser dona de um Mustang e exibir nas redes sociais fotos em hotéis cujas diárias custam cerca de R$ 1,2 mil, ela teria sacado ao longo de três meses R$ 3,6 mil do auxílio emergencial. Conforme apurado pela reportagem, Rosângela cumpriu Acordo de Não Persecução Penal e devolveu outros R$ 3,6 mil para não ser processada judicialmente. O dinheiro será destinado a entidades de cunho social. O acordo foi mediado pelo Ministério Público Federal em Passo Fundo.
Outra moradora de Espumoso, a microempresária Ana Paula Brocco, responde a inquérito aberto pela PF, ainda não concluído. Em 2020, ela planejou casamento no Caribe, para convidados. Nas redes sociais, postava fotos em resorts de luxo. Apesar disso, teria sacado R$ 600 de auxílio emergencial. Ana alega que a lua de mel seria bancada por um prêmio que seu noivo ganhou de um banco onde trabalha. O noivo dela foi intimado a explicar o patrimônio e o inquérito teve prazo prorrogado.
Em Encantado, um terceiro retratado pelo GDI teve seu caso investigado por policiais. É o industrial Pedro Giordani, que teria se inscrito para receber R$ 600 do auxílio emergencial, apesar de, na época, ser dono de uma fábrica de placas, de uma moto, uma casa na praia e um barco. Ele foi indiciado pela PF por estelionato.
Contrapontos
O que diz José Paulo Schneider, defensor de Ana Paula Brocco e Rosângela de Freire Melo
“A Rosângela reconhece que poderia ter agido diferente. Não era interesse dela prejudicar o erário. Por isso, devolveu o dinheiro. Já a Ana Paula entende que preenche os requisitos da lei e por isso não se propôs a devolver o benefício. Ela confia na defesa que fez no inquérito policial”.
O que diz Pedro Giordani
Os repórteres ligaram seis vezes para Giordani, sem serem atendidos. Foi também deixado recado a ele sobre o assunto, sem retorno.