Duas correntes de pensamento se digladiam, no Brasil e no Exterior, a respeito de qual seria a solução para frear a fabricação clandestina de cigarros. Esse tipo de crime foi retratado pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI) nesta semana. Conforme a série de reportagens, paraguaios montam indústrias ilegais de tabaco no território brasileiro. Com isso, sonegam impostos e conseguem baratear o produto vendido.
Uma linha de pensamento avalia que a pirataria de cigarros pode ser melhor combatida se os impostos referentes a esse produto baixarem. No Brasil, a taxação sobre o cigarro é de 82%. No Paraguai, o imposto sobre o produto é de 18%. Com isso, o cigarro contrabandeado é vendido a R$ 3 em cidades brasileiras, enquanto o produto feito legalmente aqui não baixa de R$ 6.
Recentemente, o Senado do Paraguai sepultou iniciativa que pretendia dobrar o valor dos impostos sobre cigarros naquele país — e um dos líderes da contraofensiva ao aumento tributário foi o ex-presidente Horácio Cartes, maior fabricante paraguaio de cigarros. As marcas produzidas por Cartes são as mais contrabandeadas para o Brasil e foram encontradas na fábrica clandestina de Montenegro visitada pelo GDI.
Essa corrente conta com simpatias no governo e nas indústrias de tabaco brasileiras. No final de março, o ministro da Justiça, Sergio Moro, criou um grupo de trabalho para avaliar a redução da tributação de cigarros fabricados no Brasil. O objetivo é diminuir o consumo de "cigarros estrangeiros de baixa qualidade, o contrabando e os riscos à saúde dele decorrentes". O texto não cita os problemas causados pelos produtos brasileiros. Não há prazo para conclusão.
O enfoque, portanto, é o do prejuízo econômico causado pela pirataria. A estimativa do governo federal é de que o cigarro clandestino movimente R$ 12 bilhões por ano e que 54% do tabaco consumido no país seja pirata.
A outra corrente prega justamente o contrário: subir os impostos. Isso forçaria a redução no consumo de tabaco (legal ou ilegal). É uma linha defendida pelos operadores da área de saúde, preocupados com as doenças derivadas do tabagismo.
A estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS) é de que 7 milhões de pessoas morrem por ano, no mundo, em decorrência de doenças ocasionadas pelo fumo, como câncer e problemas cardíacos e pulmonares. Em torno de R$ 5,5 trilhões são gastos em cuidados de saúde e perda de produtividade por causa do cigarro, por ano, em todo mundo, de acordo com a organização.
A revista científica The Lancet apontou, em 2017, que, no Brasil, entre 1990 e 2015, o percentual de fumantes diários caiu de 29% para 12%, entre homens, e de 19% para 8% entre mulheres, devido a políticas públicas restritivas ao tabaco.
É pelas consequências à saúde que algumas ONGs defendem o controle máximo do tabaco. A ACT Promoção da Saúde, por exemplo, prega aumento de preços e impostos, com o argumento de que o custo do tabagismo atinge R$ 56,9 bilhões por ano no país, chegando perto de 1% do PIB. "Esse custo é cerca de quatro vezes superior ao que se arrecada com os tributos sobre produtos de tabaco. Neste sentido, adotar novas políticas fiscais de aumento de impostos federais e estaduais incidentes sobre tabaco trará benefícios sanitários e econômicos", comparou a ONG em recente comunicado à imprensa.
Em comum, antitabagistas e indústria defendem um ponto: é preciso aumentar a repressão aos fabricantes piratas de cigarro, com reforço de fiscalização.
Os argumentos
"Menos tributos, menos pirataria"
A ponta de lança dos argumentos pela redução de impostos sobre o cigarro é feita, no Brasil, pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco). A entidade é uma organização que prioriza o combate ao mercado ilegal de produtos, entre eles tabaco, combustíveis, cervejas e refrigerantes. Entre os apoiadores do Etco, estão pesos pesados da indústria brasileira, como Souza Cruz (tabaco), Coca-Cola (refrigerante) e Ambev (bebida).
O Etco patrocina seminários e campanhas para combate aos desequilíbrios concorrenciais causados por sonegação fiscal, informalidade, falsificação, contrabando e descaminho. No quesito tabaco, o principal argumento do presidente-executivo da entidade, Edson Vismona, é econômico.
— O Paraguai produziu 62 bilhões de cigarros em 2017 (quase a mesma quantidade do Brasil), mas apenas 3,6 bilhões foram destinados para consumo interno e exportações. É que a população brasileira é 30 vezes maior que a paraguaia e, por isso, virou mercado prioritário da pirataria — declarou, ao ser recebido recentemente pelo secretário-adjunto da Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça, José Washington Luiz Santos, a pedido do ministro Sergio Moro.
Repetindo argumentos da Souza Cruz, Vismona ressaltou que o atual sistema tributário brasileiro favorece a comercialização de cigarros ilegais, que "não se submetem às normas fitossanitárias brasileiras e são vendidos abaixo do preço mínimo definido por lei".
"Mais impostos, mais saúde"
Na contramão dos argumentos econômicos do setor do tabaco, especialistas em saúde não veem sentido em coibir apenas a indústria ilegal do cigarro, se o produto comprovadamente traz malefícios ao corpo. Nesse sentido, defendem mais impostos para o setor, de forma a forçar a redução do consumo. O psiquiatra Carlos Salgado, da Associação Brasileira de Estudos sobre Álcool e Outras Drogas, diz que, quanto mais restrição, mais resultados para evitar a iniciação de jovens no hábito de fumar. O especialista ressalta que a restrição à publicidade mudou o prognóstico de saúde para uma geração inteira. O número de fumantes já foi de quase um terço da população brasileira, hoje é de cerca de 12%.
Salgado avalia que apenas inibições psicológicas não são suficientes para conter o consumo e a pirataria:
— Tem de aumentar os impostos, reduzir pontos de venda, controlar a venda a menores de idade (que é proibida). E, óbvio, continuar a repressão ao contrabando e à falsificação, porque o cigarro contrabandeado não tem controle sanitário e tem fumo de menor qualidade, cheio de detritos.
O médico ressalta que iniciativas mais radicais, como a proibição total da venda, seriam "tiro pela culatra". Ele lembra que a Lei Seca, nos EUA, favoreceu o contrabando e a ilegalidade. Para o especialista, conscientizar para os malefícios do fumo, junto com altos impostos no produto, surte mais efeito.
— Fumar já foi charmoso, hoje é um desprestígio, uma bola fora — ilustra Salgado.