A atuação da Sabemi Seguradora, revelada pelos seus executivos de contas e representantes, inclui a apresentação de supostas vantagens garantidas aos aposentados que descobrem terem se tornado sócios da Central Nacional dos Aposentados e Pensionistas (Centrape).
Atendentes da entidade explicam que o seguro, inserido na conta do idoso mediante falsificação da sua assinatura, dá direito a diversos "benefícios" que se mostrariam úteis no cotidiano.
Três dos mais enfatizados pelos interlocutores para acalmar o aposentado que procura as instituições para reclamar são os sorteios de prêmios em dinheiro, descontos em farmácias e assistência técnica para equipamentos da linha branca (eletrodomésticos como geladeira, fogão, micro-ondas e freezer).
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) descobriu que parte dos supostos benefícios, destacados em propagandas da Centrape e por funcionários da Sabemi, são de acesso difícil e alvo de cancelamentos, como o sorteio mensal de R$ 20 mil em título de capitalização e o desconto em farmácia.
A reportagem acompanhou uma ligação de Celi Scursel, 71 anos, ao call center da Centrape no dia 31 de maio. Ela é aposentada do INSS e sofreu 16 retenções no seu salário, totalizando R$ 612, sem jamais ter assinado autorização. Na ocasião, ela foi informada de que o prêmio de R$ 20 mil é sorteado sempre no último sábado de cada mês.
O fato é que o título de capitalização da Centrape, por meio do qual seria feito o concurso, está cancelado pela Superintendência de Seguros Privados (Susep) desde 28 de abril de 2019. A Susep confirmou o cancelamento à reportagem. Mais de um mês após ele ter sido retirado do mercado, a Centrape continuava a usá-lo como argumento diante de aposentados.
O produto foi cancelado porque, em maio e agosto de 2018, a Susep, órgão que fiscaliza o segmento, publicou novas normas para os títulos de capitalização. O prazo para se adaptar terminou em 28 de abril de 2019 e, como a Centrape não se remodelou para atender às exigências, o título foi cancelado. A reportagem questionou a Susep sobre a quantidade de sorteios feitos pela Centrape antes de o seu prêmio perder validade, mas a informação não foi repassada. Já a entidade de aposentados disse que fez um "recadastramento recente" para regularizar seus sorteios, que estariam normalizados.
Em diálogo gravado pela reportagem do GDI, Celi disse ao call center que queria aproveitar os descontos em farmácias oferecidos pelo seguro. O atendente confirmou a existência do benefício de forma genérica e passou a destacar outros itens. A aposentada, então, disse que precisava do endereço de uma drogaria conveniada próxima da sua casa. O interlocutor, após alguns minutos de espera, disse que Celi, moradora da zona sul de Porto Alegre, poderia procurar um estabelecimento no Itu-Sabará, na Rua Gomes de Freitas, do outro lado de Porto Alegre.
No endereço, existe uma farmácia de bairro. O GDI acompanhou Celi até o local para verificar a busca pelos descontos, mas, no balcão da loja, a informação foi de que não havia convênio ou desconto para sócios da Centrape.
"A gente sabe que realmente não é o cliente"
Um dos principais produtos do Grupo Sabemi é o seguro associativo da Central Nacional dos Aposentados e Pensionistas do Brasil (Centrape). Quando atrelado a um benefício no INSS, torna o aposentado sócio da entidade, que tem sede em São Paulo.
Embora procurem manter aparente distância, Sabemi e Centrape são vinculadas. No sistema digital da Sabemi, é possível escolher o seguro da Centrape como uma das modalidades de negócios. Formulários impressos de adesão ao seguro obtidos pela reportagem registram que o título associativo da Centrape é "garantido pela Sabemi Seguradora".
A Sabemi ainda desenvolveu o manual de "regra do negócio", no qual define especificamente os critérios de negociação do seguro da Centrape.
Gravações de áudio de janeiro de 2018, feitas por um ex-funcionário do Clube de Seguros Pampa, no centro de Porto Alegre, reforçam o indicativo de que a Centrape é um produto da Sabemi.
Duas conversas foram captadas em reuniões de supervisores do Clube Pampa com funcionários responsáveis pela digitação de seguros. Naquela época, o Clube Pampa era representante da Sabemi no Rio Grande do Sul, com 65 mil vendas fechadas, conforme informação prestada durante a reunião pelos supervisores.
Um enviado da Sabemi também estava presente na discussão, em que funcionários do Clube Pampa foram cobrados a fazer vista grossa às falsificações de assinaturas, as quais estavam gerando muitas "recusas", ocasião em que o negócio é travado por problemas técnicos.
— Primeiramente, pessoal, o número de recusas. A gente tem que tirar o pé do freio. Vamos ser sinceros, a gente trabalha com xerox. Tem muita coisa que a gente aceita, e a gente sabe que realmente não é o cliente. Mas é a nossa realidade. Ninguém aqui é criança — disse a então supervisora do Clube Pampa identificada como Márcia Cristina.
Ela ainda completou:
— Vou dar a real para vocês, é nosso salário e emprego que está em jogo. Se tiver muita recusa, a empresa não fatura. Se a empresa não fatura, também não vamos ganhar. Recusa não gera dinheiro, pensem nisso.
Foi explicado que, caso o cliente não aceitasse a adesão, "ele entraria em contato com os canais responsáveis, o SAC da Sabemi ou da própria Centrape".
Em nota, a Sabemi informou que promoveu o descredenciamento do Clube Pampa.
Como apuramos esta reportagem?
Desde o início de 2019, recebemos dezenas de contatos de leitores informando sobre descontos não autorizados nos contracheques de aposentados. Em março, iniciou-se a apuração. Se passando por um interessado no negócio fraudulento, o repórter obteve acesso a seis grupos de WhatsApp integrados por corretores de seguros de todo o Brasil. Nestes grupos, eram compartilhados relatos explícitos de como as fraudes eram realizadas. Passamos a contatar representantes bancários pelo país e verificamos junto a eles como eram feitas as falsificações de assinaturas para incluir no contracheque de aposentados descontos por seguros que eles jamais autorizaram. Ainda sem nos identificarmos como jornalistas, também nos aproximamos de executivos de contas, que confirmaram e deram mais detalhes das fraudes que lesam idosos.
Quais cuidados tomamos?
Nos grupos de WhatsApp, não fizemos manifestações, nos limitando à observação. Todos os contatos que fizemos foram individuais com os corretores e representantes. Quando tivemos acesso ao software da Sabemi Seguradora em que são incluídas propostas fraudadas contra aposentados, não fizemos a digitação de nenhum produto. Acessamos a ferramenta apenas como meio de comprovar que ali poderia ser selecionado o seguro associativo da Centrape para fazer descontos de um idoso de forma fácil e rápida. Não revelamos nossas fontes para evitar represálias a elas.
Executivos confirmam existência de fraudes
A reportagem contatou um executivo de contas da Sabemi e foi até a sede da instituição financeira, no centro histórico de Porto Alegre, para uma suposta reunião de negócios. Na conversa, o funcionário disse que, atualmente, os seguros representam 70% das receitas da empresa. Sem saber que estava sendo gravado, o executivo confirmou a existência de fraudes.
— A Sabemi teve alguns casos de representantes dela. A gente tenta cuidar ao máximo, representantes que realmente fazem fraude de assinatura. Infelizmente, tem os artistas (da falsificação). E tem. Tem mesmo. Quando a operação de seguros surgiu e os representantes perceberam que poderiam ter uma remuneração muito alta, teve gente que enlouqueceu — relatou.
O GDI ainda manteve conversas com uma executiva de contas da Sabemi lotada no interior de São Paulo — a instituição conta atualmente com 38 filiais em 23 Estados. As fraudes correm de forma banalizada no mercado, de forma que ela soube precisar detalhes até sobre os vencimentos de alguns representantes.
— Eu, como executiva, jamais posso fomentar. Mas que dá dinheiro, dá. E muito. Tem gente que ganha R$ 300 mil por mês. Alguém foi preso? Nunca — comentou a executiva.
Ela explicou que "as pessoas que 'fabricam' seguro, e tem bastante, já dentro dessa operação embutem o risco do quanto eles pagariam para um advogado ou uma eventual ação judicial de cliente. A operação deles paga todo esse risco".
A executiva indicou como utilizar uma tática supostamente "mais tranquila", o chamado "sanduíche", para vender seguros de forma casada aos clientes que buscam fazer empréstimo consignado. Neste caso, não seria preciso falsificar, apenas embutir um produto sem o conhecimento do cliente.
— Por que não colocar com o consignado o segurinho da Sabemi? — ensinou.
Contrapontos
O que diz o INSS
"O INSS realiza fiscalizações periódicas nas entidades conveniadas para comprovar a existência e regularidade dos formulários assinados pelos segurados com autorização expressa do desconto em seus benefícios. Em caso de discordância, o segurado poderá solicitar a exclusão do mesmo por meio de um requerimento entregue em qualquer agência da Previdência Social ou diretamente no sindicato ou associação ao qual é filiado.
Vale destacar que o segurado poderá ainda recorrer à ouvidoria do INSS para registrar sua reclamação. Após o encaminhamento do requerimento pelo segurado, o desconto é suspenso imediatamente.
As entidades respondem civilmente por qualquer irregularidade constatada. Comprovada a inexistência de autorização, o INSS promoverá a exclusão da base de filiados dessa entidade e restituirá os valores ao beneficiário, devidamente corrigidos. Comprovadas as irregularidades, as providências cabíveis serão adotadas, com responsabilização nas áreas cível e criminal, se for o caso."
O que diz a Sabemi
"A Sabemi é uma empresa que atua há mais de 45 anos no mercado de seguros, tem 700 funcionários e oferece serviços de seguros e assistência financeira. Com sede em Porto Alegre e representações em todo o Brasil, a Sabemi é uma empresa idônea, que conta com os mais modernos controles internos, gestão de riscos e prevenção de fraude. Quando tem ciência de alguma irregularidade, toma as providências cabíveis, legais e administrativas, culminando até em denúncia na polícia e ação judicial.
A empresa não compactua com nenhum tipo de fraude. E, desde 2018, vem adotando medidas mais rígidas contra qualquer ilicitude:
- Descredenciou o Clube Pampa.
- Contratou uma das melhores empresas de perícia do mercado, a Hárpia, para cuidar do processo de checagem de documentos e análise de assinaturas.
- Suspendeu, desde outubro de 2018, a recepção de novos afiliados da Centrape, para ajustar a operação às exigências de qualidade da Sabemi. Retornou às atividades de angariação de novos afiliados da entidade somente em maio deste ano.
- Passou a usar fotos de selfie para assinatura digital por meio do serviço de biometria facial.
- Passou a adotar o envio de mensagem de SMS de boas-vindas para todos os clientes novos antes de mandar a cobrança bancária ou do desconto em folha, para que o cliente possa confirmar se fez mesmo a aquisição de um produto da companhia.
- Começou a mandar também uma carta de boas-vindas para todos os novos clientes, criando assim um canal de comunicação e dando oportunidade de o cliente entrar em contato com a empresa por meio do telefone 0800 da Sabemi, para o caso de ele não concordar com a aquisição do produto e poder cancelar antes mesmo de ser enviada uma cobrança.
Em relação às acusações de falsificações de assinaturas, a Sabemi recebe as informações fornecidas com surpresa e indignação. Salienta que nunca recebeu denúncia sobre o alegado fato. A Sabemi está à disposição para auxiliar na apuração e solução do caso. A companhia esclarece ainda que tem uma parceria comercial com a Centrape, para quem fornece seguro de acidentes pessoais, prática comum no mercado de seguros.
Cabe ressaltar que a Sabemi possui 1,5 mil representantes de negócios que atuam de forma independente e que, embora não sejam funcionários da empresa, passam por treinamentos presenciais e à distância. Caso não cumpram com as cláusulas contratuais, a parceria é imediatamente interrompida.
Em relação aos sorteios da Centrape, a Sabemi explica que é mais uma fornecedora da instituição e que os sorteios estão ocorrendo regularmente. A Sabemi está à disposição para esclarecer e contribuir com informações e ações que possam auxiliar na redução de práticas ilegais no mercado."
O que diz a Centrape
"A Centrape é uma associação civil sem fins lucrativos. Fundada há 15 anos, representa os interesses dos aposentados e pensionistas afiliados. Ao todo, são 19 benefícios que podem ser verificados no site da entidade, na página no Facebook e no canal do YouTube. São benefícios reais, efetivos e de fácil acesso.
A Sabemi é mais um dos muitos parceiros que a entidade utiliza para disponibilizar benefícios e serviços de qualidade aos seus afiliados. Caso alguma das empresas contratadas não esteja cumprindo com o seu papel de bem atender o afiliado, é advertida, notificada ou substituída, dependendo da gravidade. No caso presente, tão logo tenhamos conhecimento dos casos relatados será feita uma apuração minuciosa e as providências serão tomadas.
Queremos desde logo esclarecer que a Centrape é tão vítima quanto o aposentado. No caso dessa investigação jornalística, a entidade afirma que não possui ingerência na captação de novos afiliados por terceiros. Mais: antevendo que sua relação com terceiros pode ser passível de fraudes, conta com moderno e atualizado programa de conformidade (compliance) desenvolvido para sua área de atuação e sustentado por dois pilares:
- Evitar, ao máximo, a ocorrência de fraudes no momento da captação de possíveis novos afiliados por terceiros;
- Identificar fraudes possivelmente cometidas por empresas que atuam na captação de afiliados e punir.
Para verificar falsificação de assinaturas, a entidade conta com apoio de empresa especializada em identificar fraudes. Funcionários são treinados para comparar assinaturas e reconhecer divergências. Os sorteios ocorrem regularmente e com a chancela da Susep, com contrato garantido pela Zurich Capitalização. Houve um recadastramento recente e a numeração foi atualizada. Em dois anos e meio, foram premiados 43 afiliados, com aporte de R$ 860 mil.
Reiteramos que a entidade se esforça por cuidar bem de seus 245,3 mil afiliados. O número de reclamações que a entidade recebe não chega a 1% do total de matriculados."
O que diz o Clube de Seguros Pampa
A reportagem tentou contato por telefone e foi até a sede do Clube de Seguros Pampa, onde foi recebida por um de seus representantes. A empresa, contudo, não se manifestou.
O que diz a Susep
"A Superintendência de Seguros Privados (Susep) já abriu dois processos de fiscalização em relação à Sabemi Seguradora. O primeiro, em 2017, foi concluído e apurou irregularidades nos procedimentos, o que resultou em multas à empresa. O segundo, em 2018, está em fase de conclusão e poderá resultar, além de multas, na suspensão da operação de produtos, uma vez que seja constatada a reincidência do problema ou novas irregularidades. O relatório de fiscalização já concluído foi encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF) em 2018 e um novo relatório será encaminhado ao MPF após a conclusão do processo.
A Susep informa que os processos de fiscalização citados são referentes ao produto de assistência financeira."O órgão confirmou que é ilegal a cobrança de seguro sem a autorização expressa do beneficiado e informou que "poderá abrir novas fiscalizações".