Visitar Piratini é como ingressar no vertiginoso túnel do tempo da Guerra dos Farrapos, regressar ao início do século 19 sem escalas, botar os pés nos mesmos lugares onde andaram Bento Gonçalves, Antônio de Souza Netto e Giuseppe Garibaldi. Passados 176 anos da escolha para ser a capital da República Rio-Grandense, a cidade guarda, com suas cicatrizes e seus encantos, o cenário da rebelião contra o Império do Brasil.
Pelo rumo que se tomar nas ruas centenárias, depara-se com algum legado farroupilha. Pode-se começar pelos três prédios tombados como patrimônio nacional. No sobrado que abrigou o Palácio de Governo, caminha-se por escadas - a madeira a estalar antigos ruídos - onde circulou o multiministro Domingos José de Almeida, o mentor administrativo da república. Dentro do palacete, salas de teto alto são arejadas pelos mornos ventos de setembro.
Não se deve ter pressa ao esquadrinhar Piratini. Uma estranha casa, com cinco portas e apenas uma janela, hospedou Garibaldi e Luigi Rossetti, que escaparam da Itália por serem carbonários (sociedade secreta revolucionária), os inimigos das tiranias. Na residência, de telhado ondulado, Rossetti editou o jornal O Povo, cujo exemplar custava 80 réis - menos da metade do preço de uma garrafa de cerveja.
A atmosfera revolucionária é realçada quando se chega ao sobrado onde operou o Ministério da Guerra. Assentado no topo da cidade, oferece vista para a Serra dos Tapes - chamada Asperezas pela vegetação espinhosa e pelos cerros que se erguem como sentinelas na vastidão do pampa. No interior do prédio, fica o Museu Histórico Farroupilha, que exibe relíquias da insurreição.
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Cavalos, espadas e modista francesa
Não foi por acaso que o governo de secessão se instalou em Piratini, como evidenciam as dezenas de locais que se pode conhecer atualmente.
Além da posição geográfica estratégica - perto do Uruguai e guarnecida por obstáculos naturais -, dispunha de casarões e sobrados para abrigar os ministérios. E oferecia um fator tão vital como a pólvora: o entusiasmo libertário de Manoel Lucas de Oliveira, Joaquim Pedro Soares, Joaquim Teixeira Nunes e outros.
- Piratini foi o centro político e revolucionário - define a diretora do Museu Histórico Farroupilha, Angélica Panatieri, 45 anos.
O povoado florescia às vésperas da sedição. Como o censo de 1814 apontou 3.673 moradores - dos quais 1.535 eram escravos negros e 182 indígenas -, é possível que contasse com cerca de 5 mil habitantes ao se tornar a capital do separatismo. Plantava-se algodão, cevada, linho e trigo. Produzia-se vinho, carne de gado e lã.
Havia até uma fábrica de cerveja, do açoriano Lucindo Manoel de Brum, que vendia a garrafa a 200 réis. Não se sabe até que ponto a conflagração afetou a produção da bebida. O prédio, com amplas portas e vitrais, continua elegante, mas hoje tem outra função.
Um serviço de correios a cavalo, lançado em 1832, fazia a rota Piratini a Pelotas, prometendo três entregas de cartas, malotes e baús por mês. Estafetas e chasques percorriam 118 quilômetros, por atalhos, para cumprir a missão.
É provável que tenham esfalfado as montarias às vésperas da revolução, para atender as trocas de mensagens entre os conspiradores da região.
Piratini não era reduto somente de botas embarradas, cavalos suados e soldados afiando o gume das espadas. A diretora do Museu Municipal Histórico Barbosa Lessa, Daniele Amaral, 27 anos, destaca o aspecto refinado. Damas frequentavam o Teatro Sete de Abril e se vestiam pelas tendências europeias. Não sujavam os sapatos no barro, caminhavam em calçadas de pedra, assentadas pelo suor dos escravos.
- Havia uma modista francesa na cidade - conta Daniele.
A cada setembro, aumenta o turismo a Piratini. Uma das principais atrações é a encenação temática, com 12 atos e 25 intérpretes. Os moradores se transformam em Bento, Garibaldi, Anita, Canabarro, Souza Netto. Um dos atores, o policial civil Luciano Dutra Almeida, 35 anos, acha fácil representar.
- Vivemos dentro do próprio cenário. Bebemos na fonte. Se abro a janela, vejo a casa do Garibaldi - conta ele, que gosta de encarnar Domingos de Almeida.
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