Aida Ferreira costumava acompanhar um ritual que a avó, Geraldina, cumpria com rotineira devoção. Ao pé de uma cruz encravada no Barro Vermelho, na periferia de Rio Pardo, depositava flores, acendia velas e rezava pelas almas dos que tombaram em 30 de abril de 1838, numa das mais encarniçadas batalhas da Revolução Farroupilha.
Consta que foi tanto sangue derramado, até a vitória dos farrapos, que o chão mudou de cor, obtendo a denominação que ostenta hoje: Barro Vermelho.
A piedosa Geraldina, que morreu há 20 anos, orava pelos farrapos, pelos imperiais, pelos familiares, pelos amigos - sobrava uma vela e uma rosa até para eventuais desafetos. As homenagens póstumas continuam, por outros moradores, mas de forma diferente. Aproveitando a cruz, foi erguido o Monumento ao Soldado Desconhecido, no mesmo local, em 2011.
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Iniciativa da Associação Grupo de Amigos Rafael Oliveira (Agaro), a obra reverencia o combatente sem nome - o bucha de canhão que se expõe a tiros e lançaços. Está na contramão de outras esculturas, que eternizam no bronze o general de uniforme reluzente empoleirado num garanhão. O secretário de Turismo e Cultura, Ronaldo Pinto Gomes, destaca a intenção:
- Os famosos são conhecidos. Aqui, a homenagem é para os heróis anônimos.
A memória dos desconhecidos, e os seus restos mortais, se perderam no Barro Vermelho. Quando crianças, Aida Ferreira e um irmão encheram um carrinho de rolimã com ossos que haviam sido retirados do solo durante a preparação de uma horta. A brincadeira foi interrompida pelo avô, Jorge, ao ver a situação macabra.
- Ele nos disse para não botarmos a mão, que era coisa da guerra. Eram ossos humanos - lembra Aida, diretora do Museu Barão de Santo Ângelo e professora de História, Filosofia e Sociologia.
O Hino Rio-Grandense surgiu após o combate
O confronto que persiste na memória da população ocorreu no terceiro ano da guerra civil. Comandados por Bento Gonçalves, Bento Manuel (que depois passaria para o lado imperial), Antônio de Souza Netto e Domingos Crescêncio, os farrapos atacaram Rio Pardo - uma das maiores cidades da província, com 12 mil habitantes.
Os chefes imperiais, marechal Sebastião Barreto e o major José Joaquim de Andrade Neves, futuro Barão do Triunfo, defenderam a povoação. No entanto, ao perceberem a derrocada, ordenaram que os soldados resistissem até o último cartucho e, às escondidas, teriam cometido uma desonra: fugiram de barco pelo Rio Jacuí, com outros oficiais.
O abandono do front foi investigado pelo historiador militar Lucas Alexandre Boiteux. Descrevendo a tomada de Rio Pardo - um bastião imperial estratégico para a navegação fluvial - como "tremendo desastre", Boiteux narra que o marechal e o barão foram acolhidos por embarcações ancoradas em Triunfo.
A derrota foi ainda mais acaçapante porque os farrapos apreenderam a banda imperial, dirigida pelo maestro Joaquim José de Mendanha. Mulato de Ouro Preto (Minas Gerais), estava na província a serviço do 2º Batalhão de Fuzileiros. Ao vê-la entre os destroços do Barro Vermelho, o general Netto exultou sobre a "rica banda" que "felizmente ficou intacta".
Talvez por ser tratado com as gentilezas que merecem os artistas, Mendanha aceitou compor o hino separatista. Em apenas cinco dias, apresentou a música, improvisada com melodia europeia. O poeta Serafim de Alencastro, capitão farroupilha, se encarregou dos versos. Surgiram variações depois, mas é a mesma "aurora precursora" que se canta nos estádios de futebol enaltecendo "nossas façanhas".
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