Vivendo um desastre climático sem precedentes, o Rio Grande do Sul tem 397 de seus 497 municípios — quase 80% — com estado de calamidade pública já reconhecido pelo governo federal. Devido à urgência para a liberação de recursos a serem usados na reconstrução das cidades, o poder público tem feito esse reconhecimento de forma sumária, sem uma análise mais apurada e individualizada dos documentos que justificam os pedidos das prefeituras, que demandaria alguns dias de prazo. Com isso, localidades que tiveram poucos ou nenhum dano direto causado pelas enchentes integram a lista.
O procedimento a ser adotado para decretar situação de emergência ou calamidade pública em um município é regido por lei federal de 2012 e portaria própria da Defesa Civil do Rio Grande do Sul de 2022. Via de regra, funciona assim: um município faz o decreto, que é homologado ou não pelo governo do Estado e, depois, reconhecido ou não pelo governo federal.
A medida é tomada quando ocorrem situações emergenciais que fogem à normalidade e demandam o investimento de recursos extraordinários. A partir desse reconhecimento, as prefeituras têm acesso a verbas estaduais e federais de forma facilitada, sem necessidade de processos licitatórios e podendo ultrapassar metas ficais preestabelecidas. Essa permissão extraordinária é válida por 180 dias.
Há três níveis de intensidade de desastres previstos nas normativas, e cada um prevê um tipo de ajuda financeira e humanitária. O nível 1 abrange situações de pequena intensidade, nas quais a normalidade pode ser restabelecida somente com recursos de nível local, por meio de emprego de medidas administrativas excepcionais. No nível 2, estão casos em que, para ser retomada, a normalidade depende de recursos complementares do Estado e/ou da União. Em ambos os níveis, a orientação é pela declaração de estado de situação de emergência.
Já no nível 3, o desastre é de grande intensidade e o funcionamento das instituições públicas locais ou regionais fica comprometido, o que impõe a mobilização e a ação coordenada das três esferas de atuação do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil e, eventualmente, de ajuda internacional. É nesse nível que se encontra o Rio Grande do Sul e 397 de seus municípios: nesse caso, é decretado estado de calamidade pública.
Para ter acesso ao aporte de recursos, o município precisa apresentar um documento explicitando quais foram os danos e o que se precisa fazer.
— A gente precisa apresentar um plano de trabalho para o governo federal, que diga "olha, a gente teve todos estes danos aqui". Em um desastre da magnitude do que vivemos atualmente, não conseguimos quantificar isso de um dia para o outro, porque a cada dia o dano é maior, mas temos que, minimamente, quantificar o tamanho do estrago. Por ora, o que precisamos é de auxílio humanitário para conceder às tantas pessoas que foram afetadas — afirma Luciane Martins Pinheiro, diretora de atividades legislativas da Procuradoria-Geral do Município (PGM) de Porto Alegre.
Em um segundo momento, é feita a análise de infraestrutura e investimentos feitos que se perderam. Por enquanto, a PGM já teve uma reunião junto à Caixa Econômica Federal, a fim de agilizar as liberações.
Divergência de entendimentos
Cidade do Litoral Norte, Imbé foi palco de polêmica nesta quarta-feira (8), quando o prefeito Ique Vedovato publicou um vídeo informando que havia decretado estado de calamidade pública no município, que não foi diretamente atingido pelas enchentes. A decisão foi um dos motivos para a instauração de investigação, por parte do Ministério Público do Rio Grande do Sul, sobre decretos de calamidade pública de municípios não atingidos pela enchente.
A alegação do gestor foi de que a migração para lá de pessoas da Região Metropolitana cujas casas sofreram inundações gerou um aumento na demanda pela oferta de serviços em áreas como saúde e assistência social, que causaria um desequilíbrio nas contas da prefeitura. Muito criticado pela medida, Vedovato revogou o decreto nesta quinta-feira (9).
Em entrevista à Rádio Gaúcha, o prefeito de Imbé se disse surpreso com a repercussão negativa, uma vez que outros municípios nessa mesma condição também tinham assinado decretos de calamidade pública ou de situação de emergência. Em portaria publicada no Diário Oficial da União nesta quarta-feira, aparecem listadas cidades do Litoral Norte como Balneário Pinhal, Xangri-lá, Torres e Capão da Canoa.
A prefeitura de Capão da Canoa diz não saber por que aparece na listagem, pois não assinou nenhum decreto nem de situação de emergência, nem de calamidade pública, o que foi confirmado pela reportagem de GZH. A suspeita da procuradora-geral do município, Angela Shardosim, é de que o processo foi modificado devido à "situação excepcionalíssima" do Estado, o que pode ter envolvido levantamentos de danos em serviços, por exemplo, de telefonia, o que Capão da Canoa registrou no período.
— Tivemos danos em uma torre de telefonia e até alguns casos de alagamento, mas sem um comprometimento da nossa capacidade de resposta. Não estamos livres de decretar (situação de emergência), dependendo do movimento migratório e outras situações, mas, até agora, o nosso município não preenche os requisitos, mas foi reconhecido devido ao trânsito adotado pelo governo federal que, provavelmente, considerou danos como critério — analisa Angela.
Procurado, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional informou que a portaria em questão reconheceu um decreto estadual, e que, por isso, o município deve entrar em contato com o governo do Estado, para pedir a sua exclusão da lista. A Defesa Civil Estadual não informou quais municípios têm decreto homologado até o momento.
A prefeitura de Torres confirmou que declarou situação de emergência, e não de calamidade pública, no dia 2 de maio. No decreto, consta que o município foi afetado por fortes chuvas nos dias 30 de abril e 1º e 2 de maio, o que causou inundações e pontos de alagamento, "danificando consideravelmente vias públicas e obras de infraestrutura em andamento, além de grande prejuízo nas lavouras". Procurado, o município informou que uma família ficou desabrigada e foi acolhida em uma escola, e que algumas estradas do interior tiveram acúmulo de água.