Hoje aposentada, a funcionária pública uruguaia Lilian Celiberti, 73 anos - ativista de esquerda desde os Anos 1970 - lembra com clareza da noite em que foi sequestrada por servidores do Exército do seu país. Ela estava em Porto Alegre, em 1978, refugiada da ditadura militar que imperava no Uruguai. Morava no bairro Menino Deus com dois filhos pequenos e um outro militante de oposição, Universindo Diaz, quando um grupo misto de policiais brasileiros e militares uruguaios invadiu seu apartamento e levou a todos, presos. Foram vendados, levados até Montevidéu, encarcerados num presídio e só foram libertados cinco anos depois. Pois esta semana a Justiça uruguaia determinou a prisão de dois de seus sequestradores, coronéis reformados. Eles devem ficar presos até o julgamento, acuados de sequestro e abusos físicos contra prisioneiros políticos.
Os oficiais uruguaios Carlos Alberto Rossel Argimón e Glauco Yanone foram presos na quarta-feira (7) por determinação da juíza penal do 27º turno de Montevidéu, Sílvia Urioste. É uma prisão para preservar as garantias do processo judicial (algo equivalente, no Brasil, a uma prisão preventiva). Outros dois militares uruguaios também são réus no mesmo caso: o coronel Eduardo Ferro e o capitão José Bassani. Ferro já está preso, por envolvimento em outro sequestro de militantes de oposição à ditadura. Foi capturado na Espanha, em 2021. Bassani está solto, responde ao processo em liberdade.
Lilian falou por WhatsApp com GZH e, desde Montevidéu, saudou a prisão de dois de seus sequestradores (um terceiro militar responsabilizado já estava preso e um quarto aguarda julgamento em liberdade). Ela, assim como muita gente, se espanta com o tempo transcorrido desde o sequestro até a prisão dos autores: 44 anos.
- Me parece um pequeno triunfo contra a impunidade que sempre nos rodeia. A Justiça é muito injusta em relação a algumas causas. Neste momento, no Uruguai, existem algumas correntes revisionistas que querem questionar os anos de ditadura. Tentam relativizar, dizer que foi um processo necessário. Necessário para quê?
Após sua libertação, Lilian continuou militando, em plena ditadura, para que outros presos fossem soltos. Durante governos de esquerda na capital uruguaia, ela atuou na área de educação. Hoje aposentada, continua ativista, agora mais voltada ao feminismo e a causas cidadãs em geral.
Lilian demonstra espanto pelo fato de que o processo judicial - instaurado após queixa feita pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul - começou em 1984 e desde então foi impugnado pelos militares, por detalhes formais. Ela ressalta que essas questões foram várias vezes até a Suprema Corte para apreciação de detalhes que nada tem a ver com os fatos que se passaram.
- As ordens de prisões dão alívio. Existem ainda muitas causas pendentes relativas à ditadura. Ainda hoje (quinta-feira, 8 de novembro), acompanho uma audiência pública referente à tortura de presos em Canellones. Felizmente a Justiça se fez presente - comemora Lilian.
A ativista uruguaia considera que, na América do Sul, a Justiça é vítima de atrasos provocados por impugnações judiciais, o que acaba beneficiando "militaristas, golpistas, fundamentalistas, etc". Lilian faz questão de ressaltar que não considera essa uma vitória pessoal ou satisfação individual, mas uma conquista coletiva, política.
- De reafirmação democrática. Voltamos a mostrar que não queremos mais ditaduras e a luta pela democracia permanece viva. Sei que no Brasil crimes ocorridos durante a ditadura não são julgados porque ocorreu uma anistia, que abrange militares. É uma tremenda debilidade democrática - critica.
O outro militante de esquerda sequestrado com Lilian, Universindo Diaz, não conseguiu ver seus captores presos. Ele morreu em 2012, de câncer.
O caso, que ganhou repercussão internacional como "O sequestro dos uruguaios", só teve esse desfecho porque dois jornalistas gaúchos surpreenderam os militares uruguaios quando estes estavam realizando o sequestro. A dupla de repórteres identificou, entre os policiais gaúchos que ajudavam os agentes uruguaios, dois agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), ligado à Polícia Civil do Rio Grande do Sul.
A revelação de que ocorrera um sequestro talvez tenha salvo as vidas de Lilian e Universindo. Em agradecimento, ambos estiveram em Porto Alegre após serem libertados do cárcere. Eles reencontraram ao longo dos anos, comovidos, o advogado Omar Ferri (que ingressou com a ação judicial que propiciou a libertação deles) e a Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos.
A sentença sobre o sequestro dos uruguaios ainda não tem data para ser proferida.