Por Nilton Mullet Pereira
Professor da UFRGS, doutor em Educação
Sim, mas não se trata de fantasmas. São pessoas muito reais, jovens e adultos, que possuem famílias, cães e gatos; beijam seus filhos e mães, pedem desculpas, jogam gentilezas ao vento. Ao mesmo tempo, direcionam seu ódio contra outras pessoas, formas de vida, modos de existir; ameaçam, vigiam, golpeiam e, também, matam.
O nazismo é uma ideologia de ódio, foi um regime político na Alemanha, entre 1933 e 1945. Sua base é a ideia de que há seres superiores e seres inferiores; pessoas que merecem viver e pessoas que merecem morrer, simplesmente em função de sua origem e/ou pertencimento étnico-racial. O antissemitismo, o ódio aos judeus, foi uma ideia força do nazismo. Ele se sustenta na noção, nada estranha ao mundo ocidental, de que brancos e europeus, particularmente os que Hitler considerava descendentes de uma certa raça “ariana”, são formas de humanos superiores a outros humanos. Em função disso, promoveu um genocídio que matou mais de 6 milhões de judeus, e, também, ciganos, negros, homossexuais, testemunhas de Jeová, deficientes físicos e mentais. É verdade que a ideia de humanos superiores e inferiores convive com nosso mundo, ao menos desde os processos de colonização dos séculos 15 e 16, quando a escravização e o massacre de populações africanas e indígenas se tornaram uma normalidade pesada e angustiante, com a qual até hoje tais povos sofrem com seus efeitos.
O fato de um jovem de 16 anos ter assassinado professoras e estudantes em duas escolas na cidade de Aracruz (ES), utilizando símbolos nazistas colados à roupa, e cujo pai realizou postagem em rede social sugerindo a leitura de Mein Kampf, não é uma prática deslocada do tempo em que estamos vivendo, ao contrário, consiste em uma marca do avanço perigoso e mortal de práticas fascistas e nazistas se desdobrando entre nós, em nosso cotidiano. Um acontecimento tão chocante, terrível, violento e triste, infelizmente e desesperadamente, é muito atual. Afinal de contas, vivemos em uma sociedade que é estruturalmente racista, que tem cultivado o preconceito e a discriminação por séculos. Logo, o nazismo não nos é, desgraçadamente, estranho.
Contudo, somos levados a acreditar que o nazismo seja um acontecimento histórico, delimitado por uma datação específica, algo como os anos 1920, 30 e 40 do século passado, época da Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, estaria longe do nosso presente, enterrado em um passado visível apenas nos livros de História.
Nada disso: ele insiste e persiste a cada ataque contra existências alheias e a cada demonstração de intolerância e desrespeito à vida. E, agora, parece estar mais presente; em primeiro lugar, porque jovens, estudantes da escola básica ou da universidade, têm se organizado em movimentos nazistas (chamados de neonazistas), pregando e disseminando a violência contra judeus, negros, pessoas sem moradia e todos os seres humanos que, na concepção deles, sejam inferiores; em segundo, porque, independentemente de movimentos organizados, os símbolos nazistas, a suástica, a reprodução de imagens de Hitler, o combate desenfreado à democracia e a pregação de um golpe de Estado, por meio de intervenção militar, tornaram-se corriqueiros e, desafortunadamente, cada vez mais intensos. O nazismo, portanto, não consiste apenas em um acontecimento histórico do passado: é um modo de ver o mundo que parece habitar a nossa realidade.
Não se trata, por fim, de sugerir que tudo é nazismo, mas de mostrar os entulhos e os supostos que nos precedem e que criam as condições de possibilidade de existência de tal ideologia, uma vez que o nazismo é uma invenção assustadora desta sociedade autointitulada moderna, que criou e implementou de forma racional e burocrática uma máquina de matar, responsável pelo Holocausto. O nazismo foi uma solução racionalmente construída pelo capitalismo europeu, diante do colapso da sociedade liberal e do medo do que chamavam de “perigo comunista”. Não é por outra razão que, hoje, a ponto de justificar as práticas golpistas e o clamor por uma intervenção militar, o medo do comunismo tenha sido novamente invocado.
Estudar História nos permite aprender sobre o passado que passou, mas também sobre os passados que não passam, que permanecem, às vezes com uma nova roupagem; às vezes, descaradamente, como uma forma de manter privilégios roubados de pessoas, de povos, de vidas há séculos.
O nazismo subsiste, pois, a cada vez que o pensamento é empobrecido; a cada momento em que a arte e as humanidades são consideradas inúteis e dispensáveis; a cada arma de fogo que é colocada nas ruas ou no interior das residências; a cada jovem que sucumbe à suástica, sabendo ou não o que ela significa; a cada prática discriminatória. O nazismo sobrevive pelas frestas do viver. Por onde há menos vida, menos arte, menos pensamento, menos solidariedade, menos ciência, menos educação, menos respeito, menos diversidade.
Assim, o que pode nos separar do mal é nossa potência crítica e autocrítica, que somente o pensamento (com uma forte dose de solidariedade) é capaz de realizar. Pensar nos livra, ainda que momentaneamente, da produção da iniquidade.