De cinco pedidos feitos pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para retirada de processos da alçada de Justiças estaduais, como querem os pais das vítimas da boate Kiss, um foi acolhido plenamente e dois parcialmente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). No sábado, Zero Hora mostrou que, atendendo a pedido da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Marisa (AVTSM), o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, abriu procedimento preparatório para avaliar a federalização do caso.
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Destacado por Janot para analisar internamente o pedido, o procurador federal Ubiratan Cazetta, do Pará, pediu informações sobre o processo da Kiss ao Tribunal de Justiça (TJ) e ao Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS). Os familiares das vítimas querem retirar do Judiciário gaúcho a competência de julgar o caso por entender, entre outras coisas, que falta independência ao MP-RS. Os mesmos promotores que denunciam os réus pelo incêndio na Justiça de Santa Maria, Joel Dutra e Mauricio Trevisan, processam dois pais por calúnia e difamação.
O Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), nome técnico para federalização, está previsto na Constituição a partir de emenda constitucional de 30 de dezembro de 2004, conhecida como reforma do Judiciário. O instrumento remete para a Justiça Federal casos de grave violação de direitos humanos ou de incapacidade das autoridades locais para tratar satisfatoriamente do assunto. Só pode ser solicitado pelo procurador-geral da República.
Massacre do Carandiru também está em análise
Embora previsto na Constituição, o IDC é de difícil acolhimento pela Justiça Federal. O único caso aceito plenamente até agora foi o do assassinato do promotor Thiago Faria Soares, de Itaíba, em Pernambuco. Ele foi morto em razão de uma disputa de terra. Outros dois processos foram aceitos parcialmente: a morte de um vereador da Paraíba, que denunciava crime organizado, e uma série de desaparecimentos, homicídios e tortura por policiais militares em Goiás. Caso rumoroso, a morte da missionária americana Dorothy Stang, em 2005, no Pará, teve transferência rejeitada pelo STJ (leia no quadro).
– É uma tentativa juridicamente válida, mas penso que tenha remotas chances de êxito. É uma medida excepcionalíssima, onde tem de ficar demonstrada a omissão, inércia ou incapacidade de o Estado investigar e apurar determinado fato que constitua grave violação de direitos humanos. Não me parece que seja o caso do Rio Grande do Sul, muito longe disso. Eventual insatisfação com o desdobramento da investigação não a justifica. Tampouco demora no processo, o que também não é o caso, pois a tramitação, dada a complexidade, não pode ser considerada lenta ou violadora do direito ao processo penal no prazo razoável – afirma o jurista Aury Lopes, doutor em Direito Processual Penal e professor da PUCRS.
Este ano, a Defensoria Pública de São Paulo requereu a Janot para solicitar a federalização do julgamento de policiais militares acusados pelas mortes de 111 detentos no massacre do Carandiru. O pedido, assim como no caso Kiss, está em avaliação para eventual ingresso no STJ.
Atualmente, estão sendo analisados pela Justiça Federal três pedidos da PGR para federalização. O mais recente, encaminhado na quinta-feira passada, sugere a transferência do processo sobre a greve dos policiais militares do Espírito Santo, em fevereiro. Janot acredita que o Estado não tem capacidade para apurar os fatos porque, segundo o documento, "há o risco de parcialidade no prosseguimento da investigação e na penalização dos responsáveis".
Incidente de Deslocamento de Competência
Dos cinco já julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), um foi acolhido plenamente, dois foram acolhidos em parte e dois foram rejeitados. Três solicitações aguardam julgamento
ACOLHIDO
O caso – Assassinato do promotor Thiago Faria Soares, titular da Comarca de Itaíba, em Pernambuco, em 14 de outubro de 2013. Ele foi morto em razão de uma disputa de terra. Foi considerado mandante do crime um fazendeiro, que perdeu a posse da propriedade para a noiva de Soares, Mysheva Martins, em um leilão realizado pela Justiça. Os dois estavam no carro do promotor quando o veículo foi interceptado pelos assassinos em uma estrada da região, mas ela e um tio, que também estava no automóvel, conseguiram escapar. Em maio de 2016, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu a transferência do caso para que o julgamento dos réus fosse feitos pela Justiça federal. Ele entendeu que houve falhas na investigação criminal e conflitos entre a Polícia Civil e o MP estadual que facilitariam a impunidade.
O que disse o STJ – O pedido foi acolhido em agosto de 2014. De acordo com a decisão da 3ª turma da Corte, há "notório conflito institucional que se instalou, inarredavelmente, entre os órgãos envolvidos com a investigação e persecução penal dos ainda não identificados autores do crime": "A falta de entendimento operacional entre a Polícia Civil e o Ministério Público estadual ensejou um conjunto de falhas na investigação criminal que arrisca comprometer o resultado final da persecução penal, com possibilidade, inclusive, de gerar a impunidade dos mandantes e dos executores do citado crime de homicídio". Em outubro de 2016, dois dos três réus foram condenados a penas de 40 anos e 50 anos de prisão e um, absolvido.
ACOLHIDOS EM PARTE
O caso – Assassinato do advogado e ex-vereador Manoel Bezerra Mattos Neto, em Pitimbu (PB), em janeiro de 2009, na praia de Acaú. O homicídio foi motivado pela atuação de Mattos contra o crime organizado, especialmente grupos de extermínio. Pedido feito pelo então procurador-Geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
O que disse o STJ – Solicitação acolhida em parte para que fosse deslocado para a Justiça Federal da Paraíba o julgamento da ação. A 3ª seção do STJ entendeu ser "notória a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas" ao caso. O júri foi realizado e os réus, condenados.
O caso – Várias ocorrências de homicídio, tortura e desaparecimento de pessoas em Goiás, com o envolvimento de policiais militares (PMs) desde 2000. Pedido feito pelo então procurador-geral, Roberto Gurgel, em 2013.
O que disse o STJ – Solicitação acolhida em parte pela 3ª seção do STJ para deslocar três dos casos indicados: desaparecimento de Célio Roberto, tortura de Michel Rodrigues da Silva e desaparecimento de Pedro Nunes da Silva Neto e de Cleiton Rodrigues.
INDEFERIDOS
O caso – Assassinato da missionária americana Dorothy Stang, ocorrido em Anapu (PA), em 2005. Conforme o então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, Dorothy foi "brutal e covardemente" assassinada e o fato foi, por completo, "subvertido em investigações encetadas no âmbito estadual, que passavam a apontar a vítima _ diga-se senhora idosa e, exclusivamente, dedicada à assistência dos mais pobres – como figura de peso em agitações no campo, apresentando-a como pessoa perigosa".
O que disse o STJ – A 3ª seção da Corte indeferiu o pedido, entendendo que as autoridades estaduais empenharam-se na apuração dos fatos com objetivo de punir os responsáveis, "refletindo a intenção de o Estado do Pará dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos diretos humanos, o que afasta necessidade de deslocamento da competência originária para a Justiça Federal".
O caso – Suscitado por Sandro Ricardo da Cunha Moraes, integrante do Tribunal de Contas da União (TCU) de Pernambuco. Ele queria o deslocamento de procedimento em curso no TCU estadual sobre sua aposentadoria por invalidez permanente. O pedido foi feito pelo próprio Moraes, em 2013, alegando que atos administrativos praticados no âmbito da Corte culminaram em sua aposentadoria por invalidez permanente, motivada por laudo que teria constado quadro de "esquizofrenia paranoide" e de "psicopatia".
O que disse o STJ – Não aceitou o pedido de federalização em razão da "ilegitimidade ativa do requerente". Apenas o procurador-geral da República pode fazer o pedido.
AGUARDAM JULGAMENTO
* Em maio de 2016, a PGR pediu a federalização de cinco homicídios que aconteceram em 14 de maio de 2006 em São Paulo. Na ocasião, cinco homens foram assassinados no Parque Bristol, após serem atingidos por tiros disparados por pessoas encapuzadas. Houve alteração da cena do crime, sugerindo a forma de atuação similar a uma série de outros assassinatos que vinham acontecendo no Estado por parte de grupos de extermínio compostos por PMs. À época, a Polícia Civil paulista abriu inquéritos para apurar os fatos, mas concluiu pela ausência de elementos suficientes de autoria, encaminhando os autos ao Ministério Público do Estado, que pediu o arquivamento. A Justiça acolheu o pedido e alegou não haver informações sobre autoria, motivação ou envolvimento de policiais. Segundo a Procuradoria-Geral da República, a apuração do caso foi prematuramente interrompida.
* Em junho de 2016, Janot propôs ao STJ federalizar a apuração do caso conhecido como Chacina do Cabula, que teve 18 vítimas – 12 mortos e seis gravemente feridos –, todas com idades entre 15 e 28 anos. Em operação realizada entre a noite de 5 de fevereiro de 2015 e a madrugada seguinte, nove PMs integrantes das Rondas Especiais da Polícia Militar da Bahia (Rondesp) entraram na Vila Moisés, no bairro do Cabula, em Salvador (BA), e atiraram contra um grupo de pessoas concentrado no local. De acordo com a PGR, foram 143 disparos, 88 deles certeiros, o que resulta em média de quase 10 tiros certos por acusado. Para o procurador-geral, ao absolver sumariamente os PMs envolvidos, sem permitir que o andamento normal do processo ocorresse, a Justiça Estadual não levou em conta informações importantes que poderiam levar a um resultado diferente, o que demonstra a necessidade de a Justiça Federal assumir as investigações.
* O mais recente pedido foi feito na quinta-feira passada. Janot solicitou ao STJ a federalização da apuração de condutas e eventual responsabilização dos oficiais da Polícia Militar do Espírito Santo envolvidos nos mais de 20 dias de greve. No pedido, o procurador-geral destaca que "a sociedade capixaba, sem o policiamento ostensivo nas ruas, ficou absolutamente exposta à criminalidade".
*Zero Hora