"É preciso lembrar de quem esqueceu o caminho." Eis o fragmento 71 de Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.), de generosidade impressionante e inspiradora. Mas quem esqueceu o caminho? Quem ficou para trás e quem não acerta o caminho, também quem não sabe a senda, e até quem tomou o caminho errado e precisa de uns gritos de alerta para retomar a via. Heráclito não diz qual é o caminho nem aonde leva, mas entende que alguém deve tomar cuidado daquele outro que não está onde deveria estar. Estamos diante de um país desencaminhado: valha-nos o sábio grego.
As atitudes de ética política de cada indivíduo (isto é, você, a partir de suas escolhas) podem ser divididas em dois grandes grupos, e estes não são, necessariamente, esquerda e direita: os que têm empatia e generosidade e os que têm egoísmo e mesquinharia. Lembramos de quem esqueceu o caminho e voltamos para ajudá-lo porque sabemos que com ele será melhor nossa caminhada; logo adiante aquele extraviado pode ter a solução necessária. Lembra-se do outro pela virtude da empatia, sensibilidade que define o que é o humano e que constrói a inteligência de nosso sentido gregário e, com esta, a sobrevivência da espécie; inclui-se a regra darwiniana na intuição piedosa ou filantrópica: se eu percebo o outro carente e movo-me para ajudá-lo, é porque isto é bom para todos, pois pela solidariedade constitui-se a complementaridade de quem coabita. É o que se chama harmonia, e uma sociedade só pode sobreviver e oferecer um ambiente saudável para todos se houver certo grau de harmonia. Harmoníe, em grego, significa "construção", e era o nome da jangada de toras atadas que Ulisses construiu para navegar rumo a Ítaca, deixando Ogígia, a ilha de Calypso. Sem harmonia, naufragaremos, mas antes disso podemos construir jangadas.
Não somos apenas um país de desigualdades (todos o são), mas de iniquidades que se agravam. Deixar de pensar nos que não têm é cegueira suicida. O egoísmo social que anima o programa político hoje hegemônico, obstinado em consumar o triunfo de classe (capital e seus subservientes) à custa dos bens sociais é a pior aposta histórica que o Brasil poderia realizar. É falsa a promessa de prosperidade e emprego por meio destas reformas; mesmo que fossem demonstráveis, seria inaceitável que se realizassem por meio da degradação das relações de trabalho e do agravamento do plano de vida de quem não tem (nem terá) patrimônio e depende da Previdência Social. Pior que as reformas temerárias, todavia, é o que elas representam como expressão política de indivíduos, corporações e comunidades para quem é impossível o reconhecimento do sofrimento alheio e o compromisso com a harmonia social.
Ora somos raptados por um invasor endógeno, que usurpa o destino da nação. À degradação trágica do meio ambiente soma-se a crueldade no trato com a dívida social brasileira. Em sua obsessão de curto prazo, esta ideologia egoísta desdenha passado e futuro.
É caro demais o preço a pagar pela falta de empatia. Melhor ceder e caminhar para maior isonomia.
O problema é que, como disse o mesmo Heráclito, "porcos em lama se comprazem, mais do que em água limpa" (frg. 13), e hoje vemos multidões refestelando-se em um mar de irracionalidades, com despudor, irresponsabilidade, agressividade e alto grau de egoísmo. Precisamos rememorar a virtude cardinal da empatia e lembrar o caminho, ou construir um caminho novo que leve mais gente no rumo da finalidade maior, que deve ser, como indica outro bom grego (Aristóteles), a felicidade. Em uma boa e urgente jangada-nação.
* Francisco Marshall escreve mensalmente no