Após a repercussão da gravação na qual aparece falando em "mutretas" na prefeitura de Santa Maria, o promotor de Justiça Joel Dutra respondeu, por e-mail, perguntas de Zero Hora e afirmou que a declaração tinha sentido genérico. Nas palavras do integrante do Ministério Público Estadual, tratava-se de "um sentimento que tinha sobre relações espúrias", as quais ele tinha esperanças que fossem confirmadas pela investigação, o que não ocorreu.
Genérica também foi a resposta do promotor quando questionado se as indicações feitas no inquérito da Polícia Civil, "de indícios da prática de improbidade administrativa por parte de servidores públicos", não iam ao encontro de suas suspeitas e não eram suficientes para uma denúncia por parte do MP. Limitou-se a dizer que os promotores analisaram à exaustão os apontamentos.
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Sobre os processos que ele e colegas movem contra pais de vítimas da Kiss, Dutra se diz triste, mas não constrangido. Ressalta que, entre "todos os demais pais" dos 242 jovens mortos no incêndio das boate, são apenas três os acusados. Embora mantenha a convicção de que a contrariedades dos familiares quanto à ação do MP rompeu o "limite aceitável" e tornou-se calúnia, o promotor afirmou que, tanto ele quanto os colegas e o órgão, estão abertos para o diálogo.
Confira abaixo a íntegra das respostas enviadas por e-mail pela assessoria de imprensa do Ministério Público em nome do promotor Joel Dutra.
O senhor fala, na gravação, sobre a responsabilidade dos bombeiros e depois explica, ao repórter, que os soldados não poderiam ser denunciados porque cumpriam ordens. Mas não eram os soldados que iam ao local fiscalizar, que deveriam ter visto a espuma?
Aqui temos que lembrar que alguns bombeiros estavam em cargo de comando, enquanto outros cumpriam ordens, sem o poder de contestá-las. Três bombeiros que exerciam funções de comando foram denunciados por falsidade em razão de declararem em documento que toda a legislação foi observada, quando na verdade isso não ocorreu, já que eles deixaram de incluir uma série de normas no SIGPI (Sistema Integrado de Gestão e Prevenção de Incêndio). Quanto a estes, busquei a condenação. Nenhum outro bombeiro foi denunciado por este fato. Os outros cinco bombeiros, que fiscalizavam e que obedeciam ordens, foram denunciados por outro fato, qual seja: no exercício da função, por negligência, deixaram de observar a NBR nº 9077 (que define os locais de público) e a NBR nº 13.523, ambas da ABNT, bem como o artigo 19 do anexo único do Decreto Estadual nº 37.380/1997 (aprova as Normas Técnicas de Prevenção de Incêndios e determina outras providências no âmbito estadual), ao realizarem inspeção na edificação onde funcionava a boate Kiss, sem exigir a instalação da central de GLP, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração militar. Repito: estes cumpriam ordens, sem poder para contestá-las. Desses bombeiros é que, no curso do processo, terminei por pedir a absolvição, já que se descobriu que havia uma dupla e dúbia interpretação das NBRs, e que inclusive era orientação do comando não exigir central quando o volume de gás existente no estabelecimento não chegasse a um determinado patamar. Portanto, se averiguou que eles cumpriram à risca as ordens superiores.
O senhor diz, na gravação, ter certeza de que houve "mutreta" entre Mauro e conhecidos dele na prefeitura. O que embasou sua certeza à época?
Encerrada a reunião oficial e pública para tratar das dúvidas dos pais, passei a conversar com o senhor Flávio de maneira informal, como "uma conversa de corredor", e como ainda havia, pelo menos de minha parte, uma relação de confiança, acabei falando de um sentimento que tinha sobre relações espúrias. E esse sentimento meu, pessoal, era alimentado por uma investigação policial que estava em andamento e que buscava apurar fraude(s) na confecção de um dos documentos que permitiu a abertura e funcionamento da boate. Havia indicações dessas relações espúrias, o que, somado ao meu sentimento na época, fez com que fizesse tais comentários ao pai que gravou a conversa. Assim como ele, tinha esperança de que se confirmassem as tais indicações. Porém, a investigação não confirmou.
O senhor também disse na conversa gravada que não tinha como provar essas mutretas. Mas e o que foi apurado pela polícia, que apontou responsabilidade de servidores públicos, não foi suficiente para a denúncia do MP? Não ia ao encontro de suas suspeitas? Por quê?
O Ministério Público examinou exaustivamente todos os apontamentos feitos pela autoridade policial, tanto na área criminal quanto na administrativa. Dezenas de pessoas foram novamente ouvidas pelo MP e o resultado está nas denúncias e ações civis públicas em trâmite na Justiça. Todas as informações sobre a atuação do MP estão em espaço destinado exclusivamente ao caso Kiss no site do MP.
No caso da "mutreta", se não era "mutreta" que impactasse diretamente no incêndio, diante da forte suspeita, não deveria ter sido aberto outro procedimento para investigar relações da prefeitura com Mauro?
Como já dito, na época em que foi feita a gravação em questão, havia investigação em curso pela Polícia Civil e exatamente a conduta dos sócios da boate e dos agentes da prefeitura municipal estava sendo apurada. A atuação dos servidores e agentes públicos municipais de Santa Maria foi investigada inicialmente no inquérito civil número 00864.00006/2013. A investigação apontou que, no âmbito do Município, houve falha administrativa, mas não de forma deliberada ou maldosamente, como exige a jurisprudência para a improbidade, resultando no arquivamento parcial do referido inquérito em 15 de julho de 2013. Atendendo procedimentos internos do MP, manifestação de arquivamento é enviada ao Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). No mesmo ano, o CSMP recebe recurso da Associação das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e decidiu pelo retorno dos autos à origem (Santa Maria) para aguardo da conclusão de nova investigação policial que, segundo recurso protocolado no CSMP, conteria novos elementos de convicção. Novo inquérito civil (00864.0031/2013) foi instaurado na Promotoria de Santa Maria com objetivo de investigar a expedição de alvarás municipais à boate Kiss. A Promotoria de Justiça Cível, que conduziu o expediente, confirmou o arquivamento no dia 8 de março de 2016 e expediu de nova recomendação ao município de Santa Maria. A manifestação de arquivamento foi devolvida ao órgão colegiado, que homologou o expediente em 8 de novembro de 2016.
O senhor disse na reportagem acreditar que ainda tem "mutretas" na prefeitura. O MP não tem o dever de atuar, neste caso? Tem alguma apuração aberta?
Essa foi uma afirmação em tese, baseada em um sentimento geral em relação à corrupção no país. Mas sentimentos não bastam para que, legalmente, possam ser ajuizadas ações ou apresentadas denúncias pelo Ministério Público. É preciso provas. Repito: a atuação dos servidores e agentes públicos municipais de Santa Maria foi investigada exaustivamente. Coloco, a mim e ao MP mais uma vez a disposição para receber denúncias ou informações sobre possíveis irregularidades. É nossa função.
As "mutretas" que ainda estariam ocorrendo seriam na liberação de casas noturnas por fiscais da prefeitura? Ou quais seriam?
Como já disse, não me referi a nenhuma irregularidade específica da qual tenha indícios de que tenham ocorrido ou estejam ocorrendo. Estamos à disposição para receber qualquer nova informação que possa levar a provas concretas de irregularidades na gestão pública. Essa é a função do MP como órgão de fiscalização.
O MP comunicou à polícia ou à prefeitura sobre eventuais "mutretas" que ainda estejam ocorrendo? Por quê?
Novamente, reforço, que minha informação ao repórter da Rede Globo foi baseada em um sentimento geral em relação à corrupção no país e não a algo específico que possa estar ocorrendo em Santa Maria.
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O senhor tem algum constrangimento com a repercussão que ganhou a ação que move contra pais de vítimas da Kiss?
Tristeza sim, não constrangimento. Durante muito tempo, após a discordância de alguns pais quanto aos procedimentos técnicos adotados pelo Ministério Público, se entendeu que as manifestações estavam dentro de um limite aceitável. Porque todos podem discordar de tudo e também porque a dor, principalmente a dos pais, mas que é partilhada por todos nós, era e é imensa. E essas manifestações discordantes ocorreram durante bastante tempo. Mas, em um determinado momento, esse limite foi rompido e realmente me senti caluniado. Ainda, deve-se atentar para o fato de que não são os promotores processando os pais, mas sim, determinados promotores processando três pais, o que significa que todos os demais pais manifestaram as suas concordâncias e discordâncias com os procedimentos do MP de forma compreensível e saudável. Não podemos generalizar os acontecimentos e comparar questões incomparáveis, porque isso gera distorções. Por vivermos em sociedade é que para tudo há um limite. Quando este limite é rompido, o cidadão pode buscar uma forma de fazer cessar aquilo que entende como desrespeito. E cabe a um terceiro julgar. Repito que são casos isolados e que eles não têm comparação com a tragédia pela qual passamos.
Alguma chance ainda de vocês desistirem da ação?
Tanto Ministério Público, como instituição, quanto nós, promotores, estamos abertos ao diálogo.