A prefeitura de Santa Maria pretende arquivar nos próximos dias sindicância interna aberta para averiguar a atuação de servidores envolvidos na tragédia da boate Kiss, ocorrida em janeiro de 2013. Mesmo depois de ter sido divulgado áudio de um dos promotores do caso sugerindo a existência de "mutreta" entre a gestão municipal e um dos sócios da casa noturna, o controlador-geral da cidade, Alexandre Lima, afirma que não foram comprovadas irregularidades e que o processo só será retomado se surgir "prova contundente, cabal e concreta a respeito".
Conforme Lima, a sindicância aberta na gestão passada para investigar os procedimentos adotados por autoridades, incluindo o ex-prefeito Cezar Schirmer (PMDB) – atual secretário estadual da Segurança Pública –, e por funcionários de carreira envolvidos na liberação da boate Kiss chegou à mesma conclusão do Ministério Público (MP). Em 2016, por falta de provas, o órgão decidiu arquivar inquérito que poderia enquadrar em crime de improbidade administrativa servidores, secretários municipais e o próprio Schirmer.
– Nós não vamos nos eximir das nossas responsabilidades, mas tem de haver prova concreta (para levar o caso adiante). Se houver um fato novo ou uma prova concreta, obviamente que (o processo) poderá ser reaberto, até porque o controle interno, a ouvidoria e a corregedoria têm por dever de ofício investigar todas as denúncias, e esses órgãos tiveram a atuação reforçada na atual gestão. Os números mostram isso – diz Lima, destacando a abertura de 81 processos administrativos só neste ano, sobre as mais variadas suspeitas.
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A gravação envolvendo o promotor Joel Dutra, que reacendeu o debate em torno do caso, foi veiculada no último domingo (18), no programa Fantástico, da TV Globo. Dutra foi um dos responsáveis pelo início da investigação do incêndio, que ocorreu em 27 de janeiro de 2013 e resultou em 242 mortos.
Sem saber que estava sendo gravado por Flávio Silva, vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), o promotor falou sobre supostas falhas na fiscalização da danceteria por parte dos bombeiros e disse ter "certeza" da existência de "mutreta" na prefeitura.
"Eu tenho esse sentimento que o senhor tem. O Mauro, o Kiko (Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, donos da Kiss) até não sei, mas o Mauro, que é um cara mais antigo na noite, tem influência e tal. Que ele tem conhecido lá (na prefeitura) e que fez mutreta lá dentro, isso eu tenho certeza que aconteceu. Mas como é que vou provar isso?", disse Dutra.
A conversa ocorreu cinco meses após a tragédia, na sede do Ministério Público em Santa Maria. Na manhã desta segunda-feira, em entrevista ao programa Timeline, da Rádio Gaúcha, Dutra confirmou o conteúdo do áudio e disse ter falado de maneira genérica. Questionado sobre os motivos pelos quais não abriu investigação para apurar a suspeita, disse que um inquérito com 18 volumes já estava sendo executado pela Polícia Civil desde abril de 2013 e que o próprio MP nada detectou na época.
O inquérito da Polícia Civil sobre o incêndio apontou "indícios da prática de improbidade administrativa por parte de servidores", incluindo integrantes da prefeitura. Apesar disso, nenhum agente público foi denunciado pelo MP.
Em nota oficial sobre a gravação, o MP declarou que "que não há qualquer elemento que aponte irregularidade na atuação dos promotores de Justiça responsáveis pelo caso" e que "as afirmações do promotor [...] foram baseadas em sentimentos e convicções pessoais à época".
A posição de Dutra e do MP foi lamentada por Flávio Silva, um dos pais de vítimas da Kiss julgados por "calúnia e difamação", em ação movida por promotores e um ex-promotor, enquanto os responsáveis pelas mortes seguem impunes.
– A revolta é muito grande. A mutreta que o promotor deixou de denunciar matou 242 pessoas. O que podemos considerar desse ato? Uma omissão, uma negligência – afirmou Silva.
O vice-presidente da AVTSM disse que esperou tanto tempo para divulgar a gravação – que tinha em mãos desde 2013 –, por medo de retaliação e porque, agora, ele e os demais temem ser condenados:
– Tudo que a gente falava, diziam que estávamos brigando. Eles (os promotores) tentaram nos marginalizar. O Ministério Público manipulou a associação e um grupo de pais. Quando a gente começava a se posicionar contra, a gente era visto como o lado ruim.
Advogado de Elissandro Spohr, Jader Marques classificou como "muito séria" a suspeita levantada por Dutra.
– Primeiro, porque o próprio promotor afirma não ter provas do que chama ser uma "mutreta". Segundo, porque deixou de procurar essas provas durante a investigação. Finalmente, cabe esclarecer que os alvarás foram concedidos aos primeiros proprietários, aqueles que abriram a boate. Depois disso, foi apenas renovação. Estou estudando com meu cliente o que faremos em relação à conduta do promotor – declarou Marques.
Procurada por ZH, a chefia da Polícia Civil informou não ter recebido da prefeitura ou do MP nenhuma informação oficial que tenha repercussão criminal e que, portanto, pudesse motivar abertura de novo inquérito.
ZH também entrou em contato com a assessoria do ex-prefeito de Santa Maria e atual secretário estadual da Segurança Pública, Cezar Schirmer, para ouvi-lo sobre o assunto. A assessoria enviou a nota oficial que já havia sido encaminhada ao programa Fantástico, informando que "nenhuma prefeitura foi tão investigada quanto a prefeitura municipal de Santa Maria" e "restou que nenhum servidor ou gestor público foi indiciado, processado ou condenado, ficando claro que a prefeitura agiu no estrito cumprimento da legislação".
Da denúncia original do MP, só um dos relacionados foi condenado em processo secundário e teve a pena convertida em serviços comunitários. Em paralelo, na Justiça Militar, três bombeiros receberam sentenças, mas recorrem em liberdade. Nenhum dos apontados pela tragédia que resultou na morte de 242 pessoas está preso.
Além de Mauro e Kiko, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, da banda Gurizada Fandangueira, são réus por homicídio no incêndio, mas recorrem em liberdade da decisão da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJ) que manteve o entendimento da primeira instância e determinou que os quatro sejam julgados pelo Tribunal do Júri.