Vítima de fraude milionária praticada por instituições médicas, o IPE-Saúde atende cerca de um milhão de beneficiários. Em Soledade, o laboratório Esplanada é suspeito de ter forjado a realização de 17.666 exames entre 2012 e 2017 e se apropriado de cerca de R$ 3 milhões em favor do estabelecimento para quitar serviços jamais prestados.
Nesta quarta-feira, o credenciamento do laboratório foi suspenso e a instituição está impossibilitada de prestar novos serviços e receber pagamentos do IPE. O diretor da área de Saúde do IPE, Alexandre Escobar, falou com ZH sobre a Operação Examinação, do Ministério Público que deflagrou ofensiva para investigar a fraude. Confira a entrevista a seguir.
Como o laboratório Esplanada, de Soledade, conseguiu ficar por cinco anos inserindo exames fictícios no sistema do IPE?
Demoramos a perceber porque os mecanismos de controle não tinham a figura do usuário reclamando que teve de pagar a mais ou teve algo descontado a mais. Na verdade, ele (beneficiário do plano) nem ficava sabendo que o seu nome era usado muitas vezes.
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O sistema do IPE facilitou à fraude ao ser rudimentar? Como era dispensada a apresentação do cartão magnético, os laboratórios ficavam com as senhas das pessoas para replicar exames indefinidamente.
Sim, o laboratório ficava com as senhas e o número do cartão dos beneficiários. Quando o IPE instituiu o cartão (magnético), eles (prestadores de serviços) tiveram de adquirir a máquina. Gastaram com isso e muitos não queriam. Imagine isso em todos os consultórios do Estado. Eles não queriam gastar com isso e a forma de incentivo que houve na época foi de que quem adquirisse a máquina e passasse a fazer a cobrança na máquina, que dá um controle melhor, passaria a receber um reajuste no período e todos os reajustes subsequentes (no pagamento pelo serviço).
Quem não utilizasse a máquina porque ainda não comprou, estragou, deu problema no cartão do beneficiário ou na internet, para que o beneficiário não fique sem atendimento, ele será atendido como era antes (sem cartão magnético), mas o pagamento ao laboratório seria menor. Era uma forma de estimular que os locais adquirissem a máquina. No início do ano foi celebrado convênio com o Banrisul, garantindo que o Banrisul doe uma máquina em comodato para cada credenciado. Não existe mais motivo para não ter a máquina. Passamos a exigir que todas as transações sejam feitas com o uso do cartão. Se torna muito mais difícil qualquer fraude.
Então o laboratório Esplanada, de Soledade, trabalhava sem a máquina e sem o cartão magnético para fazer as fraudes?
A fraude, neste caso, foi toda feita sem o uso da máquina. Os valores inclusive eram menores (IPE paga mais pelos exames feitos com uso do sistema de cartão). Em tese, num mundo de ideal e pessoas honestas, o laboratório sairia prejudicado por isso. Ele acaba recebendo menos do que deveria pelos exames. Por isso que não tínhamos um olhar tão direto lá atrás nesse processo.
Depois, a partir de uma denúncia de um beneficiário, começamos a revisar todo o sistema e identificamos esse laboratório particular como tendo uma mudança de cobrança. De uma hora para outra, começou a subir o número de exames que ele realizava de forma vertiginosa. Vimos que muitos exames eram clinicamente inadequados, eles não deveriam se repetir com tanta frequência e da forma como eram feitos. Exames que deveriam ser feitos talvez uma vez por ano, eram feitos mensalmente nesse laboratório. Entramos em contato com o Ministério Público e, a partir dali, a investigação seguiu em paralelo.
É possível afirmar que, a partir de agora, somente serão autorizados procedimentos com o uso do cartão como forma de evitar fraudes?
Se na hora que o paciente estiver na frente do médico, na emergência, no laboratório ou numa consulta e der um problema na internet, que impeça de conseguir comunicar com o sistema do Banrisul, que é quem faz o cartão para a gente. Nestes casos, alguma contingência ainda vai existir, mas não aberta como era antes. Agora vão ter que entrar em contato com IPE, pedir liberação, explicar o motivo e isso vai ser acompanhado.
Temos de cuidar para que, ao tentar evitar fraudes, não prejudiquemos ainda mais o atendimento ao segurado do IPE. A norma já existia e distribuímos um comunicado dizendo que todos os atendimentos deverão ser feitos pelo PIN-PED, que é o sistema do cartão. Na verdade, existia uma tolerância muito grande com as empresas. A norma obrigando que usasse (o cartão) já existia. Agora não pode mais exame sem cartão, salvo situação de emergência, conversada diretamente com o IPE.
E antes já não podia fazer sem o cartão, mas era feito mesmo assim. Havia um descumprimento...
Antes havia a recomendação de que deveria ser feito com o cartão, mas ainda estávamos acompanhando o processo de migração do sistema e implantação do cartão. Isso foi gradativo. Até por acordo com as entidades médicas, nunca foi uma obrigatoriedade no início. O IPE condicionou os reajustes passados ao uso desse sistema.
Há quanto tempo existe o sistema de cartão?
Há mais de cinco anos, mas só no início deste ano, no final de janeiro, é que se conseguiu fechar acordo com o Banrisul para que todo o prestador tenha direito a pelo menos uma máquina de leitura de cartão sem custo. Antes eles tinham de comprar (a máquina).
O senhor acredita que houve falha de fiscalização? Apenas uma pessoa teve registrado em seu nome quase dois mil exames pelo laboratório. Como foi possível algo grande passar despercebido por cinco anos?
Na verdade, foi percebido, tanto que foi feita a denúncia para a investigação. Sobre a demora para ser percebido, aí vem os nossos números. São mais de um milhão de beneficiários, 15 milhões de atendimentos semelhantes de solicitações de exames, e isso não tem um olhar um a um. É impossível. É tudo via sistema por amostragens e discrepâncias. Neste caso, o laboratório foi crescendo lentamente. Olhando retrospectivamente, identificamos as mudanças, mas na hora não havia como perceber. A grande ajuda que o Ministério Público está nos oferecendo é a possibilidade de usar os mesmo programas que se usou agora para documentar essa fraude no restante da nossa base de prestadores.
Sem uma denúncia, essa fraude provavelmente não teria sido descoberta?
Talvez demorasse um pouco mais, mas acabaria aparecendo igual pelo crescimento de forma vertiginosa. Em algum momento, iria se perceber isso em algum dado de amostragem.
É possível qualificar a fiscalização para evitar casos futuros?
Sim, mas precisamos do ingresso de mais servidores. Estamos precisando há bastante tempo e não ocorre.
É possível recuperar os R$ 3 milhões desviados supostamente pelo laboratório Esplanada?
Esse é um dos objetivos. O Ministério Público está buscando identificar todo o patrimônio dos fraudadores para buscar cada centavo que foi desviado. Será por bloqueio de bens e valores.
O Ministério Público já admite que o caso de Soledade de dano ao IPE se repetiu em outras cidades, em volume até maior. O senhor identificou novas fraudes?
Acredito que tenham outros casos. A partir desse primeiro, quando percebemos que havia algo suspeito, começamos a olhar outros laboratórios. E identificamos outros casos que merecem atenção maior. Não posso listar nesse momento, mas estamos fazendo pente fino nos prestadores de serviço.
Quantos casos suspeitos vocês já investigam além do de Soledade?
Estamos olhando todos para definir o que se olha mais de perto com o Ministério Público. Mas diria que pelo menos outros dois laboratórios são bem chamativos e merecem atenção. São em outras cidades.
Qual o peso dessas fraudes do setor privado na situação deficitária do IPE?
Sem dúvida, cada real mal gasto, seja por desvio ou exame sem necessidade, é um real que falta para prestar serviços de maior qualidade. Isso prejudica o IPE-Saúde.