O submundo do financiamento das campanhas eleitorais nunca foi narrado com tamanho didatismo e precisão. Ao prestarem depoimento ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os executivos da Odebrecht revelaram como subornavam políticos e compravam partidos, abastecendo com R$ 200 milhões a engrenagem de corrupção e lavagem de dinheiro que moveu a disputa pelo voto nas eleições de 2014.
É um painel minucioso. Diante do ministro Herman Benjamin, o presidente da empreiteira, Marcelo Odebrecht, e alguns de seus principais auxiliares detalharam da entrega de dinheiro vivo em prostíbulos a sofisticadas operações para pagamentos em contas secretas no Exterior.
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Confessaram receber bônus pelo êxito obtido nas operações de caixa 2 e se orgulharam de repassar até R$ 35 milhões em um único dia. Apresentaram datas, cifras, nomes e codinomes. Demonstraram tanto conhecimento de conchavos e transações orquestrados ao arrepio da lei, que se atreveram a sugerir mudanças no sistema eleitoral.
– Deixa eu dar uma sugestão, ministro. Deixa eu me meter um pouco na área que não é minha. Acho que se vocês conseguissem tirar do sistema eleitoral esses programas de TV, diminuiria, e muito, tanto na compra dos partidos, quanto no marketing para fazer esses programas. Acho que muito do caixa 2 vem desse sistema, que hoje em dia tenho minhas dúvidas se tem eficiência – afirmou, com desassombro, o ex-diretor de Relações Institucionais da Odebrecht Alexandrino Alencar.
Os depoimentos foram prestados a Benjamin no processo de cassação que o PSDB ajuizou no TSE contra a chapa Dilma-Temer. O ministro encerrou as diligências e pediu às partes que apresentem alegações finais. Um relatório parcial foi enviado aos seus pares no tribunal, e a expectativa é de que o julgamento comece em abril. Se condenados, Temer pode perder o mandato e Dilma ficar inelegível por oito anos.
Compra de partidos para tempo de TV
Condenado a 19 anos na Lava-Jato e único dos delatores a voltar para a cadeia após o depoimento, Marcelo Odebrecht disse ao TSE que "inventou" a campanha de Dilma Rousseff em 2014. Durante a eleição, seu principal preposto, o diretor de Relações Institucionais, Alexandrino Alencar, para quem não havia porta fechada em Brasília, reunia-se todas as semanas com o tesoureiro da campanha petista, Edinho Silva.
Eram encontros clandestinos, em hotéis, comitês de campanha e na própria sede da Odebrecht, em São Paulo. Em 11 de junho, ele e Marcelo receberam Edinho em uma sala de reuniões contígua ao gabinete presidencial da empresa para acertar a compra do apoio de cinco partidos à chapa Dilma-Temer: PC do B, PRB, PROS, PDT e PP.
O executivo destinou R$ 25 milhões em troca do tempo de TV de pelo menos quatro destas legendas. O dinheiro assegurou à coligação a hegemonia na propaganda eleitoral, quase três vezes mais tempo do que Aécio Neves (PSDB-MG).
Cada partido tinha um codinome e um interlocutor para receber o dinheiro, pago em espécie:
– No PROS, senha Onça, o contato era o presidente Eurípedes Junior.
– No PRB, codinome Doutor, o presidente e atual ministro do Desenvolvimento, Marcos Pereira.
– No PC do B, o Vermelho, um dirigente de Goiás identificado apenas como Fábio.
– No PDT, as senhas eram nomes de jogadores do Fluminense, time do coração do tesoureiro Marcelo Panella.
Alexandrino narrou o pagamento de R$ 7 milhões a cada partido, com entregas em hotéis, escritórios e flats. O juiz quis saber se ele conhecia a fonte dos recursos.
– Era uma operação muito particular. Acho que eles não gostariam de contar, nem eu de saber. Melhor ficar na ignorância – esquivou-se o executivo.
Barriga de aluguel no repasse de dinheiro
Campanhas eleitorais custam caro. Tesoureiros exigem dinheiro farto e, de preferência, em espécie. Para garantir fluxo de caixa contínuo aos partidos, a Odebrecht terceirizou à Cervejaria Itaipava a atividade-fim do seu Departamento de Operações Estruturadas, o setor de propinas e doações eleitorais da empresa.
Atendendo na ponta a uma vasta rede de bares e distribuidores do país, a Itaipava tinha acesso a muito dinheiro vivo, fundamental a quem precisava fazer transações sem despertar a atenção do sistema bancário.
Em um esquema batizado de "barriga de aluguel", as duas empresas passaram a agir em conluio para fazer repasses a políticos. Marcelo Odebrecht e Benedicto Junior, ex-presidentes do grupo, detalharam a operação: a Itaipava fazia os desembolsos no Brasil e a Odebrecht ressarcia a cervejaria, com juros, por meio de depósitos em dólares no Exterior.
No total foram enviados R$ 117 milhões a uma conta em paraíso fiscal indicada pela Itaipava, confirmam outros dois delatores da Odebrecht, Luís Eduardo da Rocha Soares e Fernando Migliaccio.
– Qual era a combinação específica? Você (Itaipava) faz a doação em meu nome (Odebrecht). A gente cria uma conta corrente e eu te remunero por CDI como se você fosse um banco que está me emprestando dinheiro – resumiu Benedicto.
Usando a cervejaria como laranja, a Odebrecht despejou R$ 40 milhões por meio de doações legais na campanha eleitoral de 2014 a pelo menos seis partidos. Somente a chapa Dilma-Temer recebeu R$ 17,5 milhões.
– Eu tinha um problema, não consegui operar os créditos que tinha prometido. Não conseguia doar aquilo que tinha acertado. Aí, usamos a Itaipava – admitiu Marcelo.
Bônus aos diretores sobre propina e caixa 2
Como toda multinacional que se preze, a Odebrecht estipulava metas e pagava bônus por desempenho aos seus diretores. Não raro, o êxito nas operações de caixa 2 engordava muitos contracheques.
Fernando Migliaccio, um dos principais mentores do esquema de doações ilegais da empresa, revelou ao TSE que os executivos receberam entre US$ 5 milhões e US$ 8 milhões após as eleições de 2014, fruto dos resultados obtidos na campanha. Por vezes, esses recursos eram transferidos direto para o Exterior, fora da contabilidade oficial da empreiteira.
Preso na Suíça enquanto tentava esvaziar contas bancárias, Migliaccio foi o primeiro executivo da Odebrecht a assinar acordo de delação premiada. Por estimativas próprias, ele calcula que, entre contas no Brasil e no Exterior, a empreiteira movimentou de US$ 650 milhões a US$ 700 milhões em 2014, incluindo doações a políticos do Brasil e de Panamá, El Salvador, República Dominicana e Venezuela. Só no Brasil, foram R$ 200 milhões. Migliaccio narra com surpreendente tranquilidade a transferência de R$ 30 milhões em uma única operação:
– A gente tinha de mandar R$ 30 milhões? Então era mandar US$ 10 milhões para um doleiro. Só que, às vezes, ele não aguentava, então distribuíam em dois ou três. Eu tinha de falar pra Lúcia (secretária do Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht): "Os primeiros cinco você passa para o doleiro A, os cinco você passa para o doleiro B e o restante você passa para o doleiro C. E ela fazia contato com essas pessoas para avisar: doleiro
Ao concluir o relato, Migliaccio gabou-se:
– O meu recorde é R$ 35 milhões em um dia.
Controle minucioso em doações ilegais
Para engendrar a máquina que operou R$ 80 milhões em caixa 2 só na eleição de 2014, Marcelo Odebrecht determinou um controle rigoroso dos repasses ilegais.
As planilhas organizadas por Benedicto Junior, com nomes, datas, cifras e senhas, são consideradas uma robusta peça de acusação contra políticos na Lava-Jato. Antes do monitoramento, a fartura de executivos oferecendo vantagens aos partidos chegou a triplicar os custos da empresa.
– O que acontecia? Um cidadão procurava Benedicto e pedia cinco. O mesmo cidadão procurava o Fernando Reis e pedia mais cinco. Procurava Marcelo e pedia mais cinco. Em vez de levar cinco, levava 15. Aí o Marcelo falou: "Vamos organizar" – contou Fernando Migliaccio.
Para facilitar a distribuição do dinheiro, a Odebrecht fixou teto de R$ 500 mil para cada pagamento. O motivo era de utilidade prática: essa era a quantia exata que cabia, em cédulas, dentro de uma mochila. Quando a exigência era maior, fracionava-se a entrega, como nas vezes em que Mônica Moura, mulher do então marqueteiro do PT, João Santana, cobrava Migliaccio.
– A gente tinha um conceito de segurança, desde o doleiro até o entregador final, de não fazer nada acima de R$ 500 mil. Só que, devido à pressão e à demanda, a gente dividia em tranches para não passar de 500. Então, era assim: "Mônica (pedia): "Preciso de R$ 1,5 milhão hoje". Ela recebia 500 de manhã, 500 à tarde e 500 à noite – explicou o executivo.
Por vezes, os pagamentos ocorriam em locais mais inusitados. Hilberto Mascarenhas, que também gerenciava o sistema de repasses, contou como combinava as entregas:
– Se fossem valores pequenos, encontravam em um bar. Você não tem ideia dos lugares mais absurdos, no cabaré...
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