Quatro anos depois do incêndio da boate Kiss, completados na sexta-feira, o andamento dos processos sobre o caso, além de não ter resultado em cumprimento de pena para nenhum dos envolvidos (como mostrou reportagem publicada no mesmo dia por ZH), levanta nova dúvida jurídica.De um lado, decisões recentes do Tribunal de Justiça (TJ) condenaram a prefeitura de Santa Maria e o Estado a indenizar um sobrevivente e a família de um dos 242 mortos na maior tragédia do Rio Grande do Sul.
De outro, o Ministério Público (MP) arquivou os processos contra o então prefeito Cezar Schirmer – hoje secretário estadual da Segurança Pública –, ex-secretários e funcionários do município. Ao eliminar qualquer possibilidade de punição aos gestores públicos responsáveis pela fiscalização que poderia ter evitado o episódio, promotores causaram revolta entre familiares das vítimas. Mas afinal, o que explica as diferentes interpretações?
Na leitura do desembargador e presidente de Comitê de Comunicação Social do TJ, Túlio Martins, o fato de ter sido concedida a licença de funcionamento a um local que não tinha condições de operar pode gerar responsabilidade criminal ou não. Mas a falha do serviço público, segundo ele, é evidente, o que não deixaria dúvidas quanto à responsabilização cível.
– Pode ser que nunca se encontre o responsável (dentro da prefeitura). A prova suficiente para o civil não é suficiente para o crime. A esfera criminal é extremamente específica, precisa de autor, de culpabilidade – compara o magistrado.Por unanimidade, desembargadores de câmara do TJ – entre os quais Martins – decidiram, na segunda-feira passada, que os pais e o irmão de Ariel Nunes Andreatta devem receber quase R$ 200 mil por danos morais e materiais.
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Antes, em 18 de janeiro, o TJ já havia ordenado pagamento de R$ 20 mil a uma sobrevivente. As sentenças abrem caminho para avalanche de ações semelhantes.Em seu voto, o desembargador Jorge Luiz Lopes do Canto sustentou que o incêndio só tomou grande proporção em razão de a casa noturna estar em pleno funcionamento, apesar de estar com a licença de operação vencida.
''Embora a causa direta do incêndio tenha sido a utilização de artefato pirotécnico pela banda que tocava no dia da tragédia, tal circunstância não exclui a responsabilidade do Município de Santa Maria e do Estado, que tinham dever de fiscalizar, não havendo qualquer rompimento do nexo de causalidade'', escreveu.
O subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do MP, Fabiano Dallazen, diz que o órgão não denunciou servidores da prefeitura porque a investigação não comprovou ligação deles com as causas diretas das mortes: a espuma tóxica, instalada pelos donos da boate, e o artefato incendiário, usado pela banda.
– Eles seguiam a tramitação que vinha. Era irregular, dava problema, mas aquilo era uma normatização que estava equivocada e que já vinha de tempo – ponderou Dallazen.
Segundo juristas, acusação a gestores públicos era possível
Embora admita que a investigação encontrou irregularidades na liberação de alvarás, Dallazen reforça que a opção do MP em denunciar os réus por homicídio doloso não permitia, pela ausência de ligação direta, acusar os gestores municipais pelo crime.
Juristas consultados por ZH avaliaram que as evidências de omissão dos agentes públicos poderiam ter sido objeto de processo por outro delito, paralelo ao da acusação por homicídio.Segundo Giorgio Forgiarini, professor de Direito Constitucional e Administrativo da Faculdade Palotina de Santa Maria (Fapas), a falha da prefeitura poderia, no mínimo, ter sido enquadrada como improbidade administrativa.
A leitura é semelhante à do advogado Aury Lopes Jr., autor do livro Prazo Razoável do Processo Penal:
– Em tese, o MP poderia ter feito as duas coisas. Denunciado os quatro (atuais réus por homicídio) criminalmente e proposto ação civil pública em relação aos agentes públicos.
Líder do inquérito que na época do incêndio responsabilizou 28 pessoas e atual titular da 2ª Delegacia de Polícia de Santa Maria, o delegado Marcelo Arigony reitera não ter dúvida quanto aos apontamentos estarem corretos. Tanto que agora argumentos da apuração têm amparado decisões do TJ:
– O inquérito deve apontar tudo aquilo que é causa do evento, havendo concretude razoável e materialidade.
Silêncio entre promotores que processam pais e mãe de vítimas
Três pais e uma mãe de vítimas da tragédia da Kiss estão expostos a algo que parecia impensável em meio a toda angústia que se tornou a espera por justiça.
Três promotores do Ministério Público (MP) e um promotor aposentado estão processando os familiares dos mortos por calúnia e difamação. Como os casos são mais simples e têm menos testemunhas que o do incêndio, é provável que – se a sentença for favorável às acusações – os pais sejam punidos antes dos réus pela tragédia – cujo Júri segue sem data para ocorrer. ZH entrou em contato por telefone com todos os promotores.
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Nenhum quis se pronunciar.Controversos, os processos são vistos com ressalvas até mesmo por membros do Judiciário. Um integrante da cúpula do Tribunal de Justiça aposta que as denúncias serão derrubadas em todas as instâncias por tratarem de algo "indefensável" e que mancha a imagem do MP.
O presidente da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Sérgio Silva, e o vice-presidente Flávio Silva foram denunciados por calúnia pelo promotor Ricardo Lozza. Antes da tragédia, em inquérito que apurava a perturbação sonora da Kiss, Lozza descobriu que a licença ambiental da casa (emitida pela prefeitura) estava vencida e propôs um termo de ajustamento de conduta (TAC), firmado entre o MP e os donos da boate para realização de obras para redução de ruídos.
Frustração e revolta entre os acusados
Em abril de 2015, familiares das vítimas fixaram cartazes em diversos pontos de Santa Maria pedindo a responsabilização do promotor por não ter tomado medida mais firme, como a interdição da boate. Em maio, os cartazes foram removidos por ordem da Justiça. Mas em setembro, Lozza abriu processo por calúnia contra Sérgio e Flávio. Previsto no artigo 138 do Código Penal, o crime tem pena de detenção de seis meses a dois anos e multa.Flavio, pai de Andrielle, morta na tragédia no dia em que comemorava o aniversário de 22 anos, se considera marginalizado:
– Quem deveria estar aqui para nos proteger, está abrindo um processo para tentar nos calar. O diretor jurídico da AVTSM, Paulo Carvalho, pai de Rafael, morto aos 32 anos na tragédia, se diz indignado e impotente. Publicou dois artigos no Diário de Santa Maria (DSM) com críticas à atuação dos promotores Joel Dutra e Mauricio Trevisan, que trabalhavam na investigação do caso. Acabou processado pelos dois por calúnia e difamação.
– Não queremos briga com o MP, queremos verdade – desabafa Paulo.Um terceiro processo pesa contra Marta Beuren, mãe de Sílvio, 31 anos, também morto no incêndio. Ela publicou artigo no DSM informando que Ricardo Schultz y Castro, filho do promotor aposentado João Marcos Adede Y Castro, virou advogado da Kiss depois da aposentadoria do pai, que atuava na promotoria quando a boate começou a ser investigada pelo MP por poluição sonora.