O renomado jurista paulista Modesto Carvalhosa, 84 anos, é referência quando o tema é corrupção. Autor de O Livro Negro da Corrupção, ele foi um dos especialistas convocados pelo então presidente Itamar Franco para sugerir medidas de combate à roubalheira no país. Carvalhosa defende o sistema adotado nos EUA, em que as construtoras são obrigadas a contratar seguradoras, que só terão lucro se fiscalizarem as obras públicas e garantirem que elas serão feitas pelo preço certo e com qualidade. Carvalhosa, que já foi entrevistado no programa Roda Viva, da Cultura, falou à Página 2:
Qual foi a proposta contra a corrupção defendida pelo senhor no governo Itamar?
A proposta era de vários decretos e leis para reformar o organograma da administração na época, sobretudo do DNER, que era um lugar onde havia todo o tipo de corrupção que se possa imaginar. O DNER é hoje o Dnit, que é o sucessor não só quanto a sua organização como a sua permissividade. A outra ideia era instituir o performance bond, em que se propunha que as obras fossem seguradas por uma seguradora, a qual teria o dever de fiscalizar a obra, substituindo, de fato, a fiscalização entre aspas do DNER, que não fiscalizava.
O performance bond é adotado onde?
Nos EUA, desde 1897, vai completar 120 anos. É um sistema extremamente comprovado. A licitante tem de apresentar a seguradora que garanta que a construtora vai cumprir a obra no prazo, no preço e com qualidade. Se a construtora não cumprir isso, a seguradora tem de pagar o governo ou achar outra empreiteira para fazer a obra. Assim, a seguradora, por ter interesse em não pagamento do sinistro, fiscaliza realmente a obra. Você tem uma obra garantida ao governo, no sentido no preço que foi ajustado, e no prazo, pois os atrasos causam trilhões de prejuízos. Na teoria, é um sistema simples, embora seja complicado para manter o sistema funcionando.
Por que não foi levado adiante nos anos 1990?
Porque houve sabotagem no Congresso. Já se sabia que as empreiteiras mandavam no Brasil. Não dentro dessa organização criminosa que ocorreu após 2003, mas elas sempre tiveram influência brutal, desde os anos 40.
Agora essa proposta do performance bond poderia ser levada adiante?
O presidente Temer me chamou, só que o projeto (do performance) já estava pronto. Inclusive por pedido do senador Cássio Cunha Lima. Então, o ministério se entendeu com o senador e embutiram a matéria no projeto 559 do senador Fernando Bezerra, que vai ser votado na comissão e no Senado. Com isso, há, inclusive, por vontade do presidente, a aceleração para implementar esse tipo de seguro de 100% da obra, o performance bond, para obras a partir de R$ 100 milhões. Claro que dentro da implementação possível no prazo de dois anos, mas é visão a médio prazo que mostra preocupação de sanear isso.
Esse sistema não poderia ser burlado?
Não, com isso, você quebra a interlocução do agente público com a empreiteira e aquela marmelada, seja na licitação, ou nos aditamentos de contrato, depois nos atrasos de obra, na manipulação dos projetos, com o projeto básico e o projeto executivo mal feitos. E não vai acontecer, como na Petrobras, em que as obras contratadas por preço ínfimo, de propósito, acabaram sendo pagas por 10 vezes o valor contratado. Isso acaba com a relação direta da empreiteira com a estatal ou o governo.
O que representa a Operação Lava-Jato ao Brasil?
No plano psicológico e coletivo, representa verdadeira redenção da honra da população brasileira, do orgulho de ser brasileiro, e permite que nós não fiquemos em uma depressão num país onde a corrupção impera. Existe um foco dentro do Estado que realmente garante a punição de grandes figuras que estão aí ligadas à corrupção no plano privado, pois no plano da política esse assunto está ligado ao STF. Mas acho que a Lava-Jato é um marco de redenção do país sob vários aspectos. Ela está, de certa maneira, conseguindo levar o país a uma saída desse estado de corrupção generalizada do governo e das empreiteiras.
Muitos dizem que a Lava-Jato é seletiva, mas o senhor acha que ela vai abarcar todos os partidos corruptos?
É como diz o presidente da Anistia Internacional, de que todo político pilhado em corrupção se declara vítima de perseguição política. Então, exatamente agora, esses canalhas desses políticos se declaram que estão sendo perseguidos politicamente, que a Lava-Jato está perseguindo os políticos do PT, do PMDB, do PP. Mas não tem nada a ver. Na realidade, só podem ser focados nessa questão da Lava-Jato os partidos que faziam parte desse governo agora afastado, na medida em que eles é que tinham as verbas, por meio da Petrobras, para distribuir. A oposição não tinha esses recursos disponíveis. Isso não impede que o fruto dessa corrupção na Petrobras acabe resvalando para os demais partidos, na medida em que as empreiteiras corruptas gostavam de jogar com todos os partidos.
A Lava-Jato provocou grande estrago nessa corrupção envolvendo estatais, mas essa mensagem deixada pela Lava-Jato vai conseguir inibir os corruptos de seguir agindo, seja em grande ou pequena escala?
Para isso, precisa de duas providências fundamentais. Primeiro, aprovar as 10 medidas contra a corrupção, do MPF. A segunda medida é a aprovação da performance bond. São duas medidas estruturais que vão inibir, pois no custo-benefício da corrupção, antes da Lava-Jato, o custo era zero e o benefício era 100. Hoje, o custo é 90 e o benefício é 10 para aqueles que têm delação premiada. Aos outros, é zero o benefício.
E como será o Brasil pós-Operação Lava-Jato?
Acho que vai ser dentro desse clima, de que as pessoas terão um pouco de medo de se meterem em corrupção. Que nem diz aquele João Santana: "Quando eu recebi aqueles 4,6 milhões de dólares por fora, nunca poderia imaginar que poderia ser preso por causa disso". Então, era rotina. Mas, agora, as pessoas pensam duas vezes. É um fruto extraordinário de mudança de comportamento e traz para a população a preocupação ética, de exigência, de conduta ética dos políticos, e até de conduta ética e pessoal dos cidadãos, no sentido de agirem mais corretamente.
O senhor concorda com as delações premiadas, que abrandam penas, e com os acordos de leniência de empresas corruptas, com pagamentos de multas para escapar de punições? Isso é avanço ou injusto?
As delações são uma invenção norte-americana indispensável e têm tido eficácia enorme. É uma maneira de desbaratar o crime organizado, pois no mundo hoje, a todas as entidades ligadas ao combate ao crime, interessa mais que sejam dissolvidas as organizações criminosas. Quanto a acordo de leniência, isso é um escândalo. Porque a lei anticorrupção fala é que a primeira empreiteira que é membro de um cartel pode chegar e dizer "eu quero delação premiada que eu vou mostrar toda organização do cartel e fazer com que ele seja dissolvido pelas minhas declarações todas, que mostram todos os crimes cometidos pelo cartel". Agora, no Brasil, se de um lado a Lava-Jato e as leis combatem, por outro lado tem um lobby monumental para fazer acordo de leniência de todas as empreiteiras. Elas são tudo de família e são só instrumento para os grandes, os controladores, fazerem negócios criminosos. E está sempre voltando à baila, primeiro com aquele decreto da Dilma para descaracterizar a lei anticorrupção, e depois aquele decreto de 2105 em que ela queria criar acordo de leniência para todo mundo. Isso é uma forma de legalizar a corrupção, até porque, com isso, as empreiteiras corruptas podem continuar a contratar com o governo e a receber financiamentos públicos, de BNDES, Caixa. Uma coisa terrível, mas que deve-se agradecer também à Lava-Jato, é que elas estão com a reputação lá no chão e combalidas.
As construtoras, que desviaram bilhões, podem ainda contratar com o Estado?Absolutamente, não. A finalidade dos tratados internacionais que o Brasil assinou e de que decorreu a lei anticorrupção é no sentido de que essas empresas, ou é vendido o patrimônio e os ativos delas, ou o controle delas a terceiros, ou elas devem ser dissolvidas. E não podem mais ter contratos com governos e estatais. Está na lei.
Na verdade, elas se tornaram gigantes por causa da corrupção, né?
Absolutamente. Elas viraram gigantes porque contratavam criminosamente, aqui e no Exterior. E o BNDES pagava tudo. Elas não tiravam dinheiro do bolso, e o BNDES pagava tudo que faziam fora e no Brasil, a grande mãe. Então é fácil ficar trilionário nessa base.
Apesar da crise atual, o senhor acha que, no futuro, o Brasil vai renascer melhor?
Muito melhor, porque primeiro mobilizou toda a população brasileira politicamente. O brasileiro virou um camarada consumidor, infantilizado pelo futebol, consumo, essas bobagens. Uma alienação completa. Com essa crise brutal de ética e econômica, houve uma mobilização política extraordinária. Hoje, o brasileiro é um homem ligado à política, à indignação. Só isso já valeu. Não vai ser a mesma coisa daqui para frente. Vai ser muito melhor.
Entrevista
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Deni Zolin
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