Uma disputa entre a prefeitura de Porto Alegre e o governo do Estado atrasou em oito horas um dos trâmites burocráticos mais difíceis da vida de Ana Paula Dalmolin: encaminhar para a funerária o corpo de seu pai, que morreu em casa, na tarde de sábado. Obter o atestado de óbito exigiu a contratação de um médico particular, depois que o Samu, um centro de saúde municipal e o Departamento Médico Legal e se negaram a prestar o serviço. A razão: há um mês, o governo estadual repassou a responsabilidade de fazer a verificação de óbitos não violentos para as prefeituras e, em Porto Alegre, um jogo de empurra começou.
Zero Hora perguntou aos secretários de Saúde do Estado e do município a qual órgão as famílias sem condições de contratar um médico particular para fornecer um atestado de óbito deveriam recorrer quando algum parente morresse de causas naturais, e as respostas foram:
– Os serviços de saúde dos municípios – afirmou João Gabbardo dos Reis, secretário da Saúde do Estado.
– O Departamento Médico Legal – afirmou Fernando Ritter, secretário da Saúde de Porto Alegre.
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O impasse teria respaldo legal. Conforme o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers), Rogério Wolf de Aguiar, a lei responsabiliza as três esferas públicas (município, Estado e União) pela ausência de um serviço de verificação de óbitos.
– Não pode um gestor público da área da Saúde dizer que não é da sua responsabilidade. Eles precisam resolver essa situação e nós, do Conselho, temos cobrado – relatou Aguiar.
No caso de Ana Paula, a via crúcis para obter o atestado de óbito do pai começou pouco depois das 17h do sábado, quando a equipe particular de emergência que atendeu o idoso disse que a verificação tinha de ser feita pela Samu. Chamada, a equipe da Samu disse que o atestado tinha de ser fornecido pela unidade de saúde mais próxima. Os familiares foram, então, ao Centro de Saúde Bom Jesus, onde uma médica disse que teriam de procurar o Departamento Médico Legal (DML). O órgão, por sua vez, informou só atender caso de mortes violentas. Ana Paula também procurou a Central de Atendimento Funerário da Capital, onde recebeu mais uma negativa:
– Disseram que era preciso ir até a unidade de saúde da Bom Jesus, a mesma que me negou atendimento. Mas, lá, explicaram que o médico não poderia deixar o plantão para fazer o atestado de óbito do meu pai. Queriam que eu colocasse o corpo dele no carro e levassem para eles? _ desabafou neste domingo.
Cansada das idas e vindas, decidiu contratar um médico particular e só à 1h da madrugada conseguiu liberar o corpo para a funerária encaminhar o velório e sepultamento, neste domingo.
Estado diz que criminalidade "tornou inviável" atender mortes não-violentas
Seu sofrimento não é exceção, admite o secretário de Saúde de Porto Alegre, Fernando Ritter. Segundo ele, há casos de familiares que esperam mais de 24 horas pelo atestado de óbito. O problema tem acontecido pelo menos desde o dia 15 de agosto, quando o governo do Estado parou de fornecer os documentos para pessoas que morreram de causas naturais, diz Ritter.
– Não houve transição: o governo resolveu dizer, de uma hora para outra, que não iria mais fazer verificação de óbitos (não violentos) – reclama o secretário.
Embora Ritter alegue que o Estado "abriu mão de suas responsabilidades", o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers) publicou uma nota informando que, na falta do médico que acompanha o paciente, o atestado pode ser elaborado "por médico do serviço público de saúde". Ou seja, a prefeitura não poderia negar o documento à família de Ana Paula. Questionado sobre a nota do órgão, Ritter disse que o município não tem condições de assumir a totalidade desses óbitos, pois precisaria contratar médicos.
– Eu vou ter que deixar de atender pessoas para fazer isso. O Estado, inconsequentemente, joga isso no colo dos municípios em pleno período eleitoral, que nos impede de criar cargos e serviços. A gente precisa sentar, conversar e fazer um processo de transição gradual – reclama o secretário.
O município chegou a encaminhar uma representação ao Ministério Público reivindicando para o Estado a responsabilidade. O secretário estadual de Saúde, João Gabbardo dos Reis, explica que o DML atendia mortes não violentas "mesmo não sendo obrigação legal", mas o aumento da criminalidade tornou a ação inviável. A decisão foi tomada por causa da reorganização da estrutura da Secretaria de Segurança Pública.
– Hoje, casos de violência demoram para serem investigados porque há uma fila enorme de casos que não deveriam estar no DML.
Gabbardo ainda acrescenta que a mudança não foi comunicada "de uma hora para outra" aos municípios, como relatou Ritter. O representante do governo do Estado disse que foram feitas reuniões de negociação, mas o município "resolveu não fazer o que estava combinado" e levar o caso ao MP.
– Vamos responder na Justiça, se for preciso. A responsabilidade pelas mortes não violentas é dos municípios, e apenas Porto Alegre criou tumulto – completou.
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