Trinta anos depois, o Rio Grande do Sul volta a enfrentar um problema que parecia que nunca mais aconteceria. Presos se amontoam em celas de delegacias da Região Metropolitana de Porto Alegre por falta de vagas no sistema prisional como se fossem animais.
Até então, as cadeias gaúchas, mesmo superlotadas, conseguiam abrigar todos os apenados. O Estado sempre foi um exemplo para o país nesse ponto, evitando que delegacias fossem usadas como uma espécie de puxadinho de presídios, mas sem as mínimas condições estruturais.
Alguns presos chegaram a ficar durante uma semana nas celas. Sem chuveiro, sem cama, sem banho de sol. E o cheiro de fezes se mistura ao da quentinha fornecida pela Susepe.
POLÍCIA CIVIL
Antônio Vicente Vargas Nunes é responsável pelas delegacias de pronto atendimento de Porto Alegre. O delegado lembra que as unidades não possuem estrutura para manter presos por mais de 12 horas. Segundo ele, não há condenados nas celas, mas a impressão que fica é de uma espécie de pena física.
"Isso causa um transtorno enorme, porque essa massa carcerária que fica nas delegacias começa a ficar impaciente e com razão, porque afinal nós não temos penas físicas na nossa legislação. E o que está acontecendo é isso. Estão acontecendo penas físicas, porque não há a mínima condição. Eles estão lá amontoados, com alimentação precária, em ambientes com pouca ventilação e isso começa a causar risco de fuga. Já se agrediram nas celas. Os policiais também ficam em tensão. Isso tem atrapalhado infinitamente o nosso trabalho", desabafa o delegado.
Em entrevista à Rádio Gaúcha, a presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul, Nadine Anflor, considerou um descaso com a categoria o que vem acontecendo nas delegacias. Lembra que mesmo com salários parcelados, os policiais têm ampliado o número de operações.
“São presos que deveriam ficar num período necessário para lavratura do flagrante. Presos que estão sem a mínima condição de higiene”, disse.
Nadine admite que a categoria tem ficado desanimada diante do atual cenário. “Tentando dar o último gás. O que resta. Eu acho que já ultrapassou o limite do razoável”.
A delegada afirma que há uma contradição por parte do Estado no que diz respeito à ocupação do Presídio de Canoas, que tem recebido apenas presos que não pertençam a facções. Ela diz que a Susepe, ao mesmo tempo em que não permite entrada desse perfil na nova casa prisional, admite a mistura desses mesmos nas celas das delegacias.
“Os presos estão hoje dentro de celas sem as mínimas condições. São vários presos de várias facções. São presos de crimes de trânsito, de violência doméstica, estupro, tráfico de drogas. Todos misturados. Homens e mulheres. Como é que a gente separa homens e mulheres nessa situação? É realmente o caos na segurança pública”, fala.
A reportagem da Rádio Gaúcha conversou com esses presos, muitos deles há vários dias na carceragem do Palácio da Polícia.
OAB
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Sul vistoriou as celas do Palácio da Polícia. Ricardo Breier testemunhou a absoluta falta de estrutura e o descaso com os presos e também com os policiais.
"Esse é um lugar que não tem estrutura para receber presos. Os agentes policiais não têm treinamento para isso. E pode acontecer algo pior", destaca Breier.
JUDICIÁRIO
Um dos locais que não recebe presos é o maior presídio do Estado, o Central. O motivo é a grande quantidade de condenados entre os provisórios. Nos bastidores, parte dos envolvidos com o sistema prisional atribui a culpa das DPs abarrotadas ao Judiciário, que determina as interdições e restringe os locais para receber esses presos.
O juiz responsável por decidir quem entra e quem sai no Presídio Central lembra que a interdição do local para novos presos já dura quase 21 anos. Ela ocorreu em agosto de 1995, vedando a entrada de presos para cumprimento de penas. Sidinei Brzuska lembra que o Estado descumpre essa decisão desde que ela foi proferida.
"Como o Estado não retira o condenado, o preso não entra. E por isso que os presos estão nas DPs. Se o Estado chegar lá e retirar os condenados, o Central opera normalmente e entram esses presos que estão hoje nas DPs. Não é a interdição do Presídio Central que está fazendo com que esses presos fiquem em DPs", ressalta.
Brzuska afirma que o Presídio Central está com a maior superlotação proporcional da história.
"Do ponto de vista da lotação total, ele já teve mais presos. Nós já tivemos 5.300 presos em 2010. Mas na época tinha um pavilhão a mais. O pavilhão C foi destruído em 2014 com a promessa de que naquele mesmo ano estariam sendo ocupadas 2.800 vagas em Canoas. Essas vagas não foram ocupadas. Foi demolido aquele pavilhão e o Central chegou aqui com quase 4.800 presos com um pavilhão a menos", explica.
O pavilhão referido pelo magistrado foi demolido no governo de Tarso Genro. Apesar da idéia de muitos de que preso tem que sofrer mesmo, Sidinei Brzuska alerta que o atual cenário não é bom para ninguém.
"Não é confortável para os presos, não é aceitável do ponto de vista para os policiais que trabalham, para os inspetores, para os policiais civis. É ruim pra sociedade, é ruim pra família. É ruim pra todo mundo. Mas não é uma decisão da VEC que está inviabilizando o sistema".
O magistrado lembra que existe uma obra praticamente pronta sem um preso sequer.
"Ao mesmo tempo, tem uma obra ali em Canoas, com 2.400 vagas, praticamente parada há mais de ano".
O juiz se refere ao Complexo Prisional de Canoas, que possui 2.800 vagas e 14% ocupada. Brzuska desabafa ao dizer que não será o Judiciário que vai resolver esse problema de falta de vagas.
"Não é o juiz que vai criar vaga e administrar o sistema", conclui.
O juiz-corregedor do Tribunal de Justiça Alexandre Pacheco afirma que alguns magistrados têm colocado presos em liberdade em razão do excesso de prazo para o encerramento da instrução processual.
"Isso é grave. Primeiro porque gera retrabalho, gera descrédito no próprio Poder Judiciário. E o pior de tudo. Isso gera impunidade, porque muitos presos acabam sendo postos em liberdade. Isso é mais um fator de risco para a sociedade", explica.
DEFENSORIA PÚBLICA
Para o defensor público-geral do Estado, Cristiano Vieira Heerdt, é inadmissível a permanência de presos em delegacias.
"A Defensoria vem acompanhando essa situação e parece que é muito mais uma questão estrutural do sistema penitenciário gaúcho. Não é uma questão confortável para a Susepe, para a Chefia de Polícia. E a Defensoria vai continuar atuando nesse processo para que seja respeitada a dignidade da pessoa humana. Nós não podemos aceitar essa situação, porque não havia essa situação até pouco tempo atrás de presos em carceragens de delegacias como ocorre em outros estados", lamenta.
Ana Paula Pozzan é dirigente do núcleo de Execução Penal da Defensoria Pública do Estado.
“O mesmo Estado que estabelece essas regras, tem sido violador dessas mesmas regras. Estabelece desrespeito aos policiais civis que também estão em desvio de função, sem a segurança adequada, fazendo celas de delegacias verdadeiras celas de penitenciárias”.
A defensora pública reclama do descaso com os direitos humanos.
“Não tem condições de higiene e muitas vezes nem mesmo de alimentação. Não tem onde tomar banho”.
MINISTÉRIO PÚBLICO
O Ministério Público Estadual vem tomando várias medidas para impedir que presos voltem a ficar muito tempo em celas de delegacias. A última foi ingressar com Ação Civil Pública. O promotor Luciano Vaccaro, coordenador do Centro Operacional Criminal do MP, faz um alerta.
“Isso pode acarretar também uma eventual soltura pelos juízes criminais diante dessa questão que é calamitosa”, lamenta Vaccaro.
O promotor defende mais agilidade por parte dos órgãos envolvidos na ocupação do Presídio de Canoas. Para ele, essa será uma solução para evitar que o problema volte a acontecer.
“Há uma estrutura prisional nova. Procurar paulatinamente ir ocupando com novos presos essas unidades. A primeira unidade que já está inaugurada. Também nos unindo em esforços com o Governo do estado que as outras unidades de Canoas possam ser inauguradas e aí nós teremos uma demanda de regime fechado para atender essa demanda reprimida que temos, que são os presos em delegacias”, destaca.
DIREITOS HUMANOS
O presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, diz que só tem a lamentar o que tanto orgulhava os gaúchos.
“Lamento profundamente muito o que nos orgulhava a todos nós, gaúchos. Ser o único estado do Brasil a não ter presos em delegacias. Lamentavelmente nos últimos tempos passou a acontecer. É inadmissível”, exclama Jair.
Defensor histórico dos direitos humanos, Jair Krischke pede providências ao Governo do Estado.
“Não se pode conceber que um preso seja mantido em delegacia a não ser por aquele tempo mais do que suficiente da Polícia tomar aquelas providências e imediatamente encaminhá-lo a um estabelecimento penitenciário. Assim é que se faz nos países civilizados. Então, na medida que o Estado fracassa rotundamente no sistema penitenciário, é que volta a ocorrer essa barbaridade. Acho que o governador do estado deveria imediatamente reunir os parcos recursos e eliminar com essa chaga”, desabafa Jair.
PGE
Para amenizar o problema dos presos em delegacias, diversos órgãos públicos fecharam acordo para acelerar a ocupação do Presídio de Canoas. Decidiram ampliar o perfil dos presos que ocupam a nova casa prisional. Além dos condenados que não pertençam a facções criminosas, também passaram a ser aceitos presos com primeira passagem. Das 393 vagas liberadas em 1º de março, 129 ainda não estavam ocupadas. A procuradora do Estado Roberta Siqueira afirma que o objetivo não é ocupar rápido, mas ocupar bem.
"Esbarramos em um problema de jurisdição também. Por exemplo, nós temos algumas vagas para o interior do Estado, mas o interior não aceita presos de Porto Alegre. Isso leva algum tempo. Então para acelerar um pouquinho a ocupação, mas sem perder de vista o perfil", destaca.
SUSEPE
O superintendente adjunto dos Serviços Penitenciários em exercício, Alexandre Porciúncula Micol, diz que a obra do Presídio de Canoas ainda não está concluída, apesar de aparentar.
"A questão do esgoto precisa de um serviço complementar que interliga os serviços que já estavam sendo executados", explica.
A Susepe afirma ainda que vai transferir os presos que estão nas delegacias conforme a liberação de vagas das casas prisionais.