Em uma de suas mais célebres canções, Chico Buarque questiona: "como vai proibir quando o galo insistir em cantar?". Passados mais de 40 anos desde que o cantor e compositor carioca compôs Apesar de Você, seus versos estão mais próximos de uma resposta. Afinal, as jornadas de junho de 2013, que levaram milhões de jovens às ruas, ainda reverberam. Agora, amadurecida e com pautas definidas, a juventude voltou a fazer um barulho capaz de estremecer um dos mais importantes direitos sociais de uma nação que se auto intitula educadora. Convenhamos, não é preciso decorar a obra do influente educador brasileiro Paulo Freire para entender que todo o ensino é fundamental.
Responsável por formar cidadãos com vida ativa na sociedade, as instituições de ensino estão vivenciando um momento pleno de aprendizagem. E, nesse caso, quem dita o teor do processo, são os principais interessados: os estudantes. O movimento de ocupação das escolas começou, no final de 2015, com a luta contra a reorganização escolar anunciada pelo governo paulista e, depois, chegou a outros estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Goiás. No Rio Grande do Sul, a movimentação teve início em Porto Alegre, mas logo alcançou um impressionante grau de interiorização. Segundo dados da página Ocupa Tudo RS _ onde estão centralizadas informações sobre as ocupações em solo gaúcho_, apenas 25% das escolas engajadas são da Capital. Até a sexta-feira, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) falava em 170 colégios sob controle estudantil no Estado. O secretário estadual da Educação, Vieira da Cunha, reconhece que são mais de cem.
A ocupação da Escola Estadual Cilon Rosa, uma das maiores da cidade com quase mil estudantes, completou 10 dias ontem. A iniciativa inspirou outros estudantes que também assumiram as outras institui. Com rotinas semelhantes, os ocupantes das instituições se dividem em comissões que são responsáveis por tarefas como cozinhar, limpar, pintar paredes, promoção de aulas públicas e de atividades de integração e culturais. Mas o modus operandi não é a única semelhança entre as manifestações. Eles reivindicam melhorias na infraestrutura das escolas, manutenção de laboratórios e bibliotecas, melhores condições de trabalho para os professores e também se posicionam contra o projeto de lei 44, interpretado como uma tentativa de privatizar o ensino.
Nas páginas de cada ocupação no Facebook, os estudantes divulgam a programação e as atividades realizadas no dia a dia. Para garantir suporte à mobilização dos estudantes, o Cpers montou comitês de solidariedade às ocupações em cada um de seus núcleos regionais, mesmo que seu engajamento tenha se dado de forma espontânea, sem articulação com entidades estudantis ou partidos políticos.
União de discursos
Para Guilherme Howes, professor de teoria social da Unipampa, mais urgente que a preocupação em como as aulas perdidas serão recuperadas, está a necessidade de se olhar para a precariedade com que esse ensino se dá. Com a experiência de quem, por três anos, trabalhou na formação de professores de escolas do interior de municípios como Ivorá, Quevedos, Nova Palma e Faxinal do Soturno, o sociólogo presenciou o nível de abandono que os educadores estão submetidos. Por isso, o especialista vê com bons olhos essa união de discurso entre alunos e professores, algo que não ocorria desde aos anos 1980.
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– Dos anos 1990 em diante, com a agenda neoliberal, houve um afastamento, uma cisão, entre os anseios do alunos e o dos professores. Parecia que eram forças antagônicas, cada um brigava por pautas diferentes. Agora, pela primeira vez, essas agendas estão próximas. Eles estão com as mesmas preocupações e um discurso uníssono: sob que condições estamos estudando? – avalia Howes.
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O sociólogo ressalta que a precarização estrutural de escolas e a forma intimidante com que professores grevistas são tratados pelo governo do Estado não é exclusividade da atual gestão.
– Você trabalhar em um lugar onde a cantina e o banheiro são sujos, baixa a autoestima do profissional e a qualidade do ensino. Isso desmoraliza até mesmo o que está sendo passado – comenta Howes.
O cientista político e professor aposentado da UFRGS Benedito Tadeu Cesar vai além. Ele explica que a educação brasileira se expandiu de uma maneira muito significativa nos últimos 20 anos, quando passou por um processo de universalização. Nos últimos governos, segundo o especialista, houve uma entrada muito importante de setores que ainda se conservavam fora do sistema de ensino, em especial, negros e pardos.
– Uma medida como essa de ocupação é sempre uma medida extrema, mas que, em alguns momentos, tem de ser utilizada. Quando você expande o ensino, e não aumenta o investimento proporcionalmente, cai a qualidade. Então, é preciso que haja uma contrarreação dos próprios interessados. É preciso que eles mostrem que não basta só colocar as pessoas na escola, é preciso por em uma escola de qualidade – comenta Cesar.
Ou seja, a conta é simples: mais pessoas nos bancos escolares, somado a menos investimento é igual ao gradual desmoronamento das políticas de ensino no país.
A desvalorização dos professores
Assim como no restante do Estado, um dos motivos das ocupações em Santa Maria é o apoio à greve dos professores estaduais desencadeada no último dia 13, em todo o Rio Grande do Sul, motivada pelo parcelamento dos salários dos servidores estaduais. Essa é outra questão crucial, segundo Cesar. O cientista político é taxativo ao afirmar que, hoje, não existe a possibilidade de um professor dar boas aulas se não tiver condições para comprar materiais de trabalho como livros, jornais, tablets ou smarphones. Para o especialista, o mesmo efeito nocivo pode ser observado no momento em que não há recursos para reformar escolas e mantê-las em bom estado de funcionamento.
– Se olharmos os prédios dessas escolas públicas dos anos 1950 e 60, elas eram majestosas, mas, hoje, estão caindo aos pedaços. E isso está muito associado à classe social que está frequentando essas escolas. Da classe média para cima, está todo mundo em escola privada. Então, a qualidade da escola pública ficou em segundo pano – argumenta Cesar.
O cientista político acredita ainda que esse movimento nacional expressa de forma clara o momento de transição que o Brasil está passando. Cesar chama a atenção para o fortalecimento de dois movimentos distintos. De um lado, representantes de movimentos de direita como o Brasil Livre, aliados ao Congresso mais conservador da história do Brasil. Essa mobilização repressiva, segundo o especialista, impede a discussão de assuntos que fazem parte da rotina dessa geração e, consequentemente, estão dentro das escolas como questões de gênero e étnicas. Na contramão, a juventude que tenta empurrar o país para frente.
– É um momento de confronto de velhas estruturas e velhas moralidades com uma nova realidade – comenta o cientista político.
O sociólogo Guilherme Howes também acredita que o atual modelo de ensino está sendo posto em xeque pelas mobilizações estudantis. O especialista afirma que a escola tradicional ficou para trás, enquanto os alunos têm no bolso um mundo luminoso e repleto de interatividade piscando na tela de tablets e smartphones. Isso faz com que essa geração não se sinta mais á vontade em passar horas com seu corpo domesticado em uma classe de madeira olhando para a lousa. E apenas dotar as escolas de computadores não seria a solução.
– Quando se fala em tecnologia nas escolas eu tenho uma teoria: se colocam coisas novas para fazer coisas velhas. Ou seja, com ou sem computador, é uma educação que tende a ser retrógrada, desinteressante e alienada do mundo que os alunos estão vivendo – argumenta Howes.
A solução? Investimento e valorização do profissional que, para Howes, precisa ser um mediador para transformar aquilo que estão vendo no mundo em conhecimento.
– Eles estão percebendo que aquele professor desanimado e que não se atualizou, não dispõe de um discurso que se possa acreditar. Por isso, os alunos estão, cada vez mais, desacreditando nesse modelo de educação. Essa precariedade faz com que a escola fique lá, sem inovar, sem avançar nos discursos, reproduzindo aquela velha fórmula de educação que já não convence mais uma gurizada, cada vez mais atenta e exigente – explica Howes.
Jovens se mostram politizados
O professor de teoria social da Unipampa acredita ainda ao assumir um papel de protagonista nesse processo, os alunos vão se dar conta de que podem ir mais longe. Ou seja, ao dar esse primeiro passo em busca de uma ensino que supra suas próprias demandas, os estudantes vão se empoderar e logo dar o próximo.
– Isso é perigoso no bom sentido. Hoje, eles estão ocupando por questões salariais e melhores condições de estudo e de trabalho. Amanhã ou depois, podem ocupar porque querem uma escola mais politicamente inserida e questionar: "por que eu preciso saber isso? Para onde esse saber vai me levar? A quem serve isso que estou estudando? Isso me constitui como cidadão ou ser humano ou vai me transformar em um apertador de parafusos? – diz Howes.
Para ambos os especialistas ouvidos pela reportagem, as ocupações são mais uma prova de que a ideia de que essa geração é despolitizada não poderia estar mais equivocada.
– Essa gurizada está retomando bandeiras que se opõem claramente a essa onda conservadora, a essa agenda neoliberal tentada a proteger o grande capital que financia campanhas, de restrição de direitos sociais, à Bancada do Boi, Bíblia e Bala , que está contra os interesses deles e que é preciso criar agendas claras de enfrentamento – comenta Howes, ressaltando que todos sabem como movimentos como as ocupações escolares surgem, mas ninguém sabe como terminam.
E se ao cabo de tudo, as ocupações servirem para que se estabeleça um franco e permanente diálogo entre comunidade, escola e alunos, o esforço terá saldo positivo. Afinal, não é sempre que jovens de 15 anos enfrentam pais, alunos e professores favoráveis ao retorno da normalidade das atividades para disputar a autonomia de seu próprio processo de formação.