Salas vazias, quando deveria ter aula. Crianças em casa – ou na rua –, quando tinham de estar no colégio. A violência em Porto Alegre não faz só vítimas. Cria uma rotina de medo e agonia que tira parte da alegria de quem ainda deveria cultivar a esperança no futuro. "Tiro, porrada e bomba" invadiram o cotidiano de quem antes temia matemática e português. Esse é o clima na Escola Estadual Erico Verissimo, no bairro Jardim Carvalho, que, se não está isolada nessa guerra urbana, transformou-se em bandeira do que não é aceitável numa sociedade moderna. Para conhecer a nova rotina do colégio – que na quarta-feira adotou turnos de apenas duas horas e já fechou as portas três vezes em nove dias –, Zero Hora acompanhou um dia no local.
Leia mais:
"Não é solução", diz Vieira em visita a escola nesta quinta-feira
Escola da Capital fecha duas vezes na semana por medo da violência
Morador do bairro Jardim Carvalho relata tiroteiona noite de sábado
A quinta-feira, 31/03/2016, na escola Erico Verissimo:
7h30min
Depois que o dia clareia, o medo irrompe no bairro Jardim Carvalho. Vizinhos de bocas de fumo e acostumados com toques de recolher noturnos, os moradores convivem com as imposições da guerra do tráfico de drogas. Às 7h30min de ontem, quando o movimento na escola deveria estar no ápice, o portão sequer estava aberto. Pelo segundo dia, os estudantes tiveram turno reduzido.
– O clima aqui? É tiro, porrada e bomba – ironizou uma mulher, que não quis se identificar. – Melhor não botar meu nome. Depois eles vêm pressionar dizendo que a gente fala demais.
9h15min
Meia-hora antes da aula da manhã começar, duas mães reclamavam em frente ao portão fechado, ao lado dos filhos: onde estariam os professores?
– Não tem ninguém aqui no portão, né? Mas deveria ter. A qualquer momento pode ter um tiroteio aqui na rua. Os alunos têm que ficar lá dentro – esbravejou uma delas.
Aos poucos, os alunos foram chegando. Grande parte estava acompanhada de um responsável, que levava até a sala de aula. Do lado de fora, olhares curiosos vigiavam as esquinas.
9h45min
A sineta, parecida com uma sirena, toca. Com algum atraso, os professores dão início ao turno da manhã. Alguns pais ficam no pátio da escola – vão esperar ali mesmo as duas horas passarem, para só depois ir embora. Uma mãe conta que abandonou o emprego numa loja para animais no ano passado por conta da insegurança.
– Tenho quatro filhos. Não posso deixar eles à mercê do crime – explicou.
10h30min
Uma viatura da Brigada Militar estaciona em frente ao colégio. Dos três policiais militares que estavam no carro, uma policial desce e vai direto para a sala da diretoria. Em menos de cinco minutos, ela sai, silenciosa, e entra novamente no carro.
– Ela veio nos entregar um convite para uma reunião que as escolas terão com a Brigada para falar da segurança nas comunidades da região – explicou a diretora da Erico Verissimo, Sílvia Farturi.
Atrás da mesa, um papel com caracteres grandes exibe o número emergencial da BM: 190.
11h30min
Acompanhado de assessores e fotógrafo, o secretário estadual da Educação, Carlos Eduardo Vieira da Cunha, chega no colégio. Ele foi propor à direção a normalização imediata das aulas. Alegando não haver condições mínimas de segurança, a diretora negou pedido.
– Se, por razões de segurança, a gente for reduzir turno de aula, então teremos de reduzir de toda a rede. Definitivamente, não é uma solução – argumentou o secretário.
Vieira solicitou que as atividades sejam retomadas integralmente dentro de uma semana, após reunião entre as secretarias da Educação e da Segurança que vai tratar da violência no entorno de toda a rede estadual de ensino. É provável, segundo a direção, que a escola atenda ao pedido.
13h15min
Hora de iniciar o turno da tarde – vislumbrando que os estudantes possam sair mais cedo e em segurança. Após entregar o filho de nove anos, uma aposentada senta-se num banco, enquanto o outro filho, de 10, brinca pelo pátio da escola. Assim passariam as duas horas seguintes. Única condição imposta por ela mesma para levar os filhos à escola, depois de dois dias ouvindo tiroteio ao raiar do dia:
– Abaixo de bala, não vou trazer meus filhos. Vim hoje, porque estava calmo. E só vou embora quando a aula acabar – disse ela, acompanhada por, pelo menos, outras oito mães.
14h
Depois de atender alguns alunos, uma professora deixa a escola mais cedo. Ela explica que, pela guerra do tráfico, alunos de outros colégios que viriam para a Erico Verissimo, que é referência nesse tipo de atendimento, não estão comparecendo. Então, ela tem de se deslocar para atendê-los em outros locais.
Ao passar o portão, a docente é abordada por uma mãe que está em dúvida se mantém ou não os filhos estudando ali. Ela mesmo não tem opinião formada. Considera o ensino bom, mas percebe o que o medo tem causado nos alunos.
14h45
Duas mães aguardam a confecção do histórico escolar dos filhos, documento necessário para que possam ser transferidos para outro colégio. Desde o começo do ano, a média, por dia, tem sido de cinco desistências. Mas, nos dois últimos dias, 22 alunos já deixaram a Erico Verissimo.
– Quando assumi a direção, em 2004, tínhamos 820 alunos. Hoje, o dado de agora, porque ele vai cair, é de 529 – lamentou a diretora.
15h15min
A sineta toca pela última vez no dia. No pátio, pais, irmãos e vizinhos procuram pelos alunos. De forma apressada, eles passam espremidos pelo único portão, há pouco chaveado. Não há ninguém controlando quem entra ou sai.
Enquanto alguns esperavam o transporte escolar e outros seguiam para a casa a pé, uma viatura da Polícia Civil passou pela Rua Comendador Eduardo Secco. Uma aluna de 9 anos escala o guard rail em frente à escola para tentar ver para onde os agentes estavam indo.
– Foram lá para cima e dobraram no beco. Quem será que estão procurando? – questionou, sem resposta.
O TERRITÓRIO CONFLAGRADO
A Escola Estadual de Ensino Fundamental Erico Verissimo ocupa uma quadra inteira da Rua Comendador Eduardo Secco. Naquele ponto, sem número, quase no topo do morro, o prédio pertence à Vila Ipê 1. Antes do recrudescimento da guerra do tráfico na região, no início do ano, o colégio era frequentado por moradores de outras partes do bairro Jardim Carvalho. Desde então, e principalmente após o tiroteio de terça-feira, estudantes que moram na Vila Colina estão impedidos de passar a "fronteira". A causa é a disputa por território entre facções de diferentes bairros, incluindo a Vila Ipê 1, contra os Bala na Cara, grupo criminoso conhecido por dominar os presídios da Região Metropolitana. Essa guerra, que se estende a outros pontos da Capital, já teria provocado a morte de quase 40 pessoas só em 2016.