A tese de defesa do coronel nascido em Santa Maria - que no fim da década de 1970 também atuou no Centro de Inteligência do Exército, em Brasília, e comandou o 16° Grupo de Artilharia de Campanha, em São Leopoldo - começou a ser escrita há mais de 30 anos pelo punho de sua própria esposa, Maria Joseíta. Em outubro de 1985, dois meses após a então deputada Bete Mendes reconhecer Ustra como seu torturador - fato que levou o nome do militar (na ocasião adido militar no Uruguai) às primeiras páginas de jornais de todo o país -, Joseíta escreveu uma carta às filhas, Renata e Patrícia, o que seria a introdução de um álbum dedicado às herdeiras do casal. No lugar de fotos da família, recortes de jornais, documentos e anotações, para que, no futuro, as filhas não se envergonhassem de carregar o sobrenome do militar. Dali veio a inspiração para o primeiro livro do militar, Rompendo o Silêncio, lançado em 1987, que reproduz e amplia os argumentos e exemplos citados no manuscrito assinado pela esposa. Excessos durante interrogatórios? Qual era esse dever? Irritava, claro. Mas esse negócio que dizem, de botar em cima de latinha, de não sei o quê, esse negócio não existia. O senhor acha que foi por causa desse episódio que virou uma espécie de símbolo do regime? O presidente Médici baixou uma diretriz de segurança interna determinando que o Exército assumisse o combate ao terrorismo. Um dia, o general Canavarro (José Canavarro Pereira, ex-comandante do 2º Exército) me chamou e disse: "Major, o senhor foi designado para comandar o DOI-Codi do 2º Exército. Estamos numa guerra. Vá, assuma e comande com dignidade". Encarei como uma missão. Cheguei em casa e disse para a Joseíta: "Olha, fui escolhido para comandar o DOI. Nossa vida agora mudou. Não vamos poder mais sair. Vamos ter que ficar com cinco homens comendo e dormindo aqui em casa, noite e dia, para nossa segurança". Foi uma missão de sacrifício, escapei de dois sequestros e muitas ameaças de morte. O número do telefone tinha de mudar quase que semanalmente, queriam sequestrar minha mulher ou minha filha, para me trocar por elas. Durante três anos, fui uma só vez ao cinema. Pois é. Foi no processo da Maria Amélia Teles. Quando ela foi presa com o marido, também me informaram que havia duas crianças no local. Disse, então, para levarem as crianças para o DOI. Na sala de interrogatório, informei que as crianças não poderiam ficar lá e que iria mandá-las para o juizado de menores. Ela começou a chorar e uma tenente ficou com dó e disse que levaria as crianças para a casa dela, se eles autorizassem. Um parente do casal, da Polícia Civil de Minas, ficou de buscar as crianças em dois dias. Com pena da dona Maria Amélia Teles, pedi para a tenente trazer as crianças para ficar com os pais umas duas horas por dia, até os tios chegarem, para elas não ficarem tristes. No processo, ela disse que eu levava as crianças para ver a mãe torturada. Olha, sou um homem que mantenho minha consciência muito tranquila. Cumpri com meu dever, durmo tranquilo, sou respeitado, graças a Deus, pelas pessoas de bem. Sou um monstro para quem está impregnado com a ideologia do outro lado, pessoal de esquerda. Sou apresentado como um monstro, também, apesar de eu achar que não sou um monstro, mas eu não sei por que fizeram esse estereótipo da minha pessoa. Não sei se foi raiva ou vingança. Ah, sim. Claro. Tem que ter para acabar com essa impunidade. O cara faz o que quer e não acontece nada? Os advogados da OAB vão lá, tiram o cara e ele sai rindo. Quebram banco, machucam policiais e fica por isso mesmo? Essa lei é necessária. Se Dilma não fizer, vai se dar mal.
Citado pelo deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) em sua fala ao votar a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, no último domingo, o coronel Brilhante Ustra voltou a ser tema de conversas e discussões nas redes sociais. Gaúcho nascido em Santa Maria, ele foi o primeiro militar brasileiro reconhecido pela Justiça como torturador. Em fevereiro de 2014, Ustra concedeu a Zero Hora uma das últimas entrevistas antes de morrer, em outubro do ano seguinte _ ele sofria de câncer.
Na entrevista, o coronel reformado admite, pela primeira vez publicamente, que "excessos" podem ter sido cometidos no período da ditadura, e assume que usava o codinome de Doutor Tibiriçá e participava dos interrogatórios de militantes presos pelo regime. Zero Hora republica a entrevista para possibilitar o acesso a usuários mobile, já que a matéria original usava um layout exclusivo para dispositivos desktop.
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Por Cleidi Pereira
Um muro transparente, de vidro, guarda a residência de um dos mais famosos agentes da ditadura. Gaúcho radicado em Brasília, o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra foi o primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça como torturador. Nos três anos e quatro meses em que comandou o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo, 502 pessoas teriam sido torturadas no local e 50, mortas pelo órgão. Ustra insiste, há décadas, em negar todas as acusações, apesar dos inúmeros relatos de ex-presos e até de ex-agentes.
Apesar da saúde mais debilitada que a do companheiro, aos 76 anos (em 2014), Joseíta - uma paraibana elegante, de fala pausada e postura altiva - continua sendo o alicerce e a bússola de Ustra, com quem é casada há 54 anos. Avesso a entrevistas, Ustra abriu uma exceção ao receber Zero Hora em sua casa no Lago Norte, numa quinta-feira ensolarada de fevereiro. Em duas horas e meia de conversa, Joseíta fez 17 interferências, e o militar também recorreu à memória da mulher seis vezes.
Prestes a completar 82 anos (o coronel morreria pouco depois, aos 83 anos), Ustra diz manter uma rotina agitada. Além de sessões de acupuntura, leva a esposa e o neto ao médico, vai ao mercado, envia exemplares de seu último livro, A Verdade Sufocada, pelos Correios. Também dedica mais de cinco horas por dia para selecionar e responder e-mails. Os contatos são feitos através do site homônimo do livro, atualizado por Joseíta.
Nesta entrevista, Ustra admite, pela primeira vez publicamente, que "excessos" podem ter sido cometidos. Ele ainda assume que usava o codinome de Doutor Tibiriçá e que também participava dos interrogatórios de militantes presos pelo regime. O militar demonstra convicção ao defender ter cumprido sua missão, evitando, assim, que o comunismo fosse implantado no Brasil.
O senhor responde a processos por tortura, sequestro e ocultação de cadáver, foi o primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador. Nos três anos e quatro meses em que comandou o DOI-Codi em São Paulo, dezenas de pessoas foram mortas pelo órgão. O senhor tem dormido bem à noite?
Sempre dormi. Graças a Deus, tenho dormido muito bem à noite. Nunca tive problema de consciência, porque não fiz nada de errado.
O senhor participou ou tinha conhecimento da realização de sessões de tortura no DOI-Codi?
Não. Eu não participei e não tinha conhecimento de sessões de tortura. Isso não havia. Excessos podem ter havido de ambos os lados. Não vou dizer para você que não houve. Pode ter havido excesso de um lado, o cara perder a paciência... Isso pode ter havido. Mas isso é explorado pela esquerda, que quer nos desmoralizar com esse problema de tortura. Mario Lago (ator, autor e comunista) já dizia isso: "Quando saírem da prisão, vocês sempre digam que foram torturados".
Que excessos podem ter sido cometidos?
Não me lembro. Excessos... Eu não me lembro, assim, de excessos que podem ter cometido.
Se cometeu, às vezes, no ato da prisão. Pode ter sido. O cara reagia, brigava, havia luta corporal... Você sabe, terrorista não é brincadeira. Não é fácil, entendeu? Mas todos dizem que foram torturados. Uma das poucas que disse em juízo que não foi torturada foi a Bete Mendes. No depoimento, chorou e disse que não foi torturada. E assinou o documento com dois advogados de defesa presentes. Chorou, disse que estava arrependida.
Por que tantos anos depois, quando vocês se reencontraram no Uruguai (em 1985, Ustra era adido militar e Bete, deputada federal) ela o acusou de tê-la torturado?
Aí, minha filha, eu é que quero saber por que que ela mudou. Quando elas foram presas eram umas crianças. Ela não, era maior (de idade).
Ela não pode ter se sentido coagida, com medo?
Mas coagida na frente do juiz, do júri, com pessoas assistindo, com dois advogados ao lado? Todos os presos chegavam lá e diziam: "Eu fui torturado horrivelmente". E ela se arrependeu, chorou. Ela esteve presa 20 e poucos dias, era a líder do grupo que doutrinava. Eram meninos do secundário, 18, 17 anos. Fui ao general e pedi para entrar em contato com o juizado de menores. Foi lá a dona Zuleika Sucupira, dava assistência e declarou: "Eles, aqui, estão sendo muito mais bem tratados do que nós poderíamos tratá-los". Depois, saíram de lá nenhum disse que foi torturado. Um pai até me escreveu uma carta agradecendo pelo tratamento.
Mas o que justifica a existência de inúmeros relatos de ex-presos e até de ex-agentes do DOI-Codi (como o ex-sargento Marival Chaves e o ex-escrivão Manoel Aurélio Lopes) que indicam que a tortura era uma prática comum no destacamento?
Olha, esse escrivão diz que serviu no DOI de 1972 a 1978, (Ustra pega um jornal e lê) "admitiu que houve torturas sistemáticas de presos políticos". Estou olhando a fotografia dele. Não me lembro de jeito nenhum. Uma coisa tenho certeza: pelo nome, da equipe de interrogatório ele não era. Uma coisa que a gente levava a sério era a compartimentação: quem era do interrogatório, era do interrogatório. Ninguém tinha nada que saber o que um e o que outro fazia. Ele disse que viu por uma porta, com certeza, não teria entrado lá.
Agora, esse sargento Marival serviu comigo uns dois meses. Esse cara, não sei o que aconteceu com ele. Eu sei, mas não posso dizer por que ele está fazendo isso. Não posso falar porque não tenho provas, mas sei por que aconteceu. Me consta que ele foi comprado, que ele recebeu grana para fazer isso. Ele disse na Comissão da Verdade que eu era senhor da vida e da morte. Ora, eu era senhor da vida e da morte de quem, meu senhor?
O senhor escreveu no seu último livro que "vidas humanas dependiam das suas decisões".
Sim, claro. A vida dos meus subordinados. Quando eu mandava meus subordinados para a missão - e existiam várias em que eu ia -, muitas vezes, levava o capelão militar para nos abençoar antes de sair. E nós partíamos para cumprir o nosso dever.
O dever? Era impedir que a luta armada vencesse e introduzisse o comunismo no Brasil, conforme eles estavam programados para fazer. Sim, esse era o nosso dever.
No seu livro A Verdade Sufocada, o senhor afirma que, quando um militante era preso, se iniciava uma "batalha contra o tempo". Quais eram as técnicas e instrumentos utilizados para obter informações?
Primeiro, a gente usava o interrogatório contínuo. Muitas vezes, a pessoa ficava uma noite sem dormir. Tínhamos que interrogar. A gente ficava se revezando para ver se vencia pelo cansaço. A gente tinha que fazer o... Mas era difícil. A gente procurava... Isso era muito raro acontecer, porque quando a gente prendia, normalmente tinha a ficha deles todinha, porque a gente seguia, sabia onde morava. Porque nosso objetivo quando prendia era combater a organização. Tinha que saber qual era o nome dele, e ele não dizia o nome. (Ustra simula um diálogo) "Qual é o seu nome?" "João." "Não, mas seu nome não é João." "É João, sim." "Onde é que você mora?" "Não sei."
Isso irritava vocês?
Soro da verdade, pau-de-arara, cadeira do dragão?
Não. Soro da verdade, não. Nunca dei soro da verdade. Isso aí não dei, não.
Então, essas palavras não fazem sentido para o senhor?
Não fazem sentido para mim. Não fazem. Com toda a sinceridade, não fazem, entendeu?
O coronel concorda com a máxima de que os fins justificam os meios?
Os fins... Não, não concordo. Os meios usados? Não concordo.
O senhor é autor de dois livros (Rompendo o Silêncio e A Verdade Sufocada). Quais foram os motivos que levaram um militar a se aventurar como escritor?
Não me aventurei como escritor, porque não sou escritor. O primeiro livro escrevi porque um dia cheguei em casa e deparei com um álbum que Joseíta estava fazendo para nossas filhas, depois que a Bete Mendes fez aquele escândalo, aquela farsa toda. Saiu em tudo que é jornal. Zero Hora deu: "Coronel torturador some da embaixada". Jornal Nacional também.
Quando vi que ela estava escrevendo para nossas filhas, dizendo que não era bem assim, que eu era vítima de uma injustiça, resolvi escrever o livro. Mesmo na ativa, resolvi escrever o livro para me defender, para defender a minha família, para dizer: "Não, isso não é verdade, isso não aconteceu". Tanto não aconteceu que eu não fui substituído. Fui mantido no cargo até meu último dia. Foi para rebater a Bete Mendes, a chamei de mentirosa, desfiz ponto por ponto todas as mentiras dela. E ela calou. Não entendi até hoje por que montaram essa coisa.
Não sei por que sou o bode expiatório. Acho que isso foi um dos fatores que, realmente, mostrou para o povo "ó, esse cara é torturador". O outro livro escrevi porque quando houve a contrarrevolução (o golpe de 1964), depois que acabou tudo, houve a Lei da Anistia. Os militares se recolheram e era proibido falar nisso. Então, silêncio total sobre o passado, respeito à lei. Como já tinha passado para a reserva, podia falar. Não queria que só eles dessem a versão deles.
A figura de Luiz Carlos Prestes chegou a ser idolatrada por seu pai, Célio, e seu tio Lupes, tanto que os dois, quando eram soldados, fizeram parte da Coluna Prestes. Lupes morreu durante a marcha. Mais tarde, a adesão de Prestes ao comunismo revoltou seu pai, que achava que a morte do seu tio tinha sido em vão. Como esses episódios influenciaram suas escolhas de seguir a carreira militar e de lutar contra o comunismo?
A Coluna Prestes fazia parte do movimento tenentista. Eles queriam mais avanços. Eram jovens idealistas, não comunistas. Meu pai contava essa história. Quando viu que tinham lutado atrás de um homem que virou comunista, ficou revoltado. Ele falava do comunismo, falava que tinham matado militares que estavam dormindo. Isso me incentivou o civismo e a entender que o comunismo não era uma coisa boa. Fui lutar contra o comunismo pelas circunstâncias da minha vida profissional. Cheguei em São Paulo quando os terroristas já tinham assaltado mais de 300 bancos e carros pagadores, matado mais de 66 pessoas e mandado mais de 300 para Cuba fazer curso de guerrilha.
Como foi o convite para chefiar o DOI-Codi?
Suas filhas nunca o questionaram sobre essa missão?
Não, absolutamente não. Todas sempre foram muito solidárias ao pai.
Nenhuma editora de projeção aceitou publicar seu último livro, A Verdade Sufocada, lançado em 2006. Depois, apenas uma livraria se dispôs a vendê-lo. Por que a sua verdade parece não convencer?
Não convencer a população? Acho que é o patrulhamento ideológico que não deixa meu livro ser publicado. Por que os jornais não dizem que eu lancei um livro? É a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça.
Mas a sua versão também não convenceu a Justiça, que o reconheceu como torturador.
Fui condenado por causa disso, minha filha. Agora, ela disse, também, que eu torturava as crianças, mas o juiz me absolveu dessa parte. Dou resposta para isso tudo. Nunca ocultei cadáver, nunca torturei criança, nunca bati em nada. Se ela estava machucada, não a machuquei. E ninguém machucou. Minha filha, olha para mim, para minha casa, para minha mulher. Vou ter cara de pegar uma criança de 4, 5 anos e (Ustra altera a voz): "Olha aqui a tua mãe toda machucada, fala aqui com a tua filha". Eu iria fazer isso? Um animal faria isso. Eu não faço isso, mas estou sendo acusado. Pergunto a você: e a Lei da Anistia? Para provar, eles sempre pegam quatro ou cinco pessoas que estavam presas na mesma época e combinam o que vão dizer. O juiz acredita e eu sou condenado.
O senhor já processou alguém por calúnia?
Não posso processar, porque ela vai pegar cinco ou seis testemunhas, ex-militantes, ex-terroristas. Combinam tudo e aí vão dizer para o juiz que me viram torturando. E eu vou fazer o quê? Vai ser a minha palavra contra a deles. Não tem como, minha filha. Eles fazem isso. Infelizmente, a nossa Justiça é essa.
Por que essas pessoas se uniriam contra o senhor?
(Risos) Ora, minha filha, a ideologia comunista. É revanchismo, raiva de terem perdido a guerra e não terem implantado o comunismo aqui. E também por dinheiro.
Dinheiro de quem?
O nosso, das indenizações.
Se o objetivo dos militares com o golpe era o de apenas zelar pela democracia, como vocês afirmam, por que o regime se estendeu por mais de 20 anos?
Pois é. Nosso objetivo era passar o governo o mais rápido possível para os civis, quando eles começaram essa luta, que foi crescendo. Essas organizações não foram criadas depois do AI-5. Acho que se estendeu por 21 anos por causa do terrorismo. Minha opinião é que o regime deveria ter terminado no governo Médici. Se perdurou mais tempo, única, pura e exclusivamente foi por causa do terrorismo. Não se podia passar o governo para os civis com o terrorismo naquele auge e com estatutos de organizações que queriam claramente implantar o comunismo. Desaprovei essa continuação, mas quem sou eu? Isso aconteceu na América Latina toda. O Brasil estabeleceu um modelo de combate ao terrorismo. Quantos mortos nós tivemos? Não chegou a 500 mortos de ambos os lados - 119 do nosso e quase 400 deles. Isso no início, porque depois apareceu morto de tudo quanto que é lado. Todo mundo quer ser indenizado. Tínhamos mais de 40 organizações terroristas, de todos os calibres. Você acha que o terrorista brasileiro é menos capaz, menos corajoso, menos doutrinado ideologicamente, menos valente do que o argentino ou uruguaio? Não! São todos iguais. Como que, na Argentina, para combater o terrorismo, foram 30 mil mortes? No Uruguai, pequenininho, foram 5 mil mortes; Peru, 30 mil; Chile, quase 30 mil. Colômbia, que quis manter a democracia, está até hoje lá, território dividido, mais de 45 mil mortos. Se fôssemos combater igual aos outros, era 150 mil no mínimo. Pense bem. Foi menos de 500 porque nós, militares das Forças Armadas, combatemos de uma maneira diferente, de maneira profissional.
E como isso foi possível?
Demos um modelo para o mundo, com a criação dos Codis, dos DOIs e com alterações na Lei de Segurança Nacional como a incomunicabilidade de 30 dias, não tinha habeas corpus, entendeu? O povo continuou com as leis comuns, tudo igualzinho, tudo certinho.
A censura não foi uma medida antidemocrática?
Olha, não sei por que se censurava. Não tenho um ponto de vista, mas também não foi tanto assim. Às vezes, para o próprio andamento das operações, por se trabalhar com um número reduzido de vítimas, havia necessidade da censura. Foi uma necessidade nossa para acabar com isso da maneira que acabamos. É gritante. Vocês têm que entender isso, gente!
Que tipo de necessidade?
Uma necessidade nossa de lutar e não deixar que essas organizações ocupassem o Brasil. Nossa presidente, em seu discurso de posse disse: "Nós, os combatentes da liberdade, que lutamos pela democracia...". Não! Eles lutavam para derrubar o regime militar para reempossar Jango, botar o comunismo. Isso todos queriam. Minha filha, se não fosse a nossa luta, se não fosse o nosso trabalho, você não estaria aqui hoje, porque iria existir só um jornal. Isso aqui seria uma Cuba. A própria esquerda reconhece isso.
Mas a imprensa também tinha dificuldades de trabalhar na época do regime.
Devia ter, claro. Devia ter, não tenho dúvida. A gente talvez tinha de ter censura para acabar com o terrorismo o mais rápido possível.
O senhor nega que tenham ocorrido mortes dentro do DOI. Por que, então, um relatório do próprio Exército, com estatísticas do órgão, aponta 50 mortos até setembro de 1975?
Porque houve 50 mortos.
Mortos de que forma?
Em combate, fazendo cobertura de pontos. Quando prendíamos um terrorista, sabíamos que um terrorista não sabia o nome do outro, um não sabia onde o outro morava. Então, eles se comunicavam através de pontos, que eram locais de encontro. Tinha o ponto de polícia, para onde eles iam se eram presos. Tinha o ponto frio, inventavam um ponto que não era o de encontro para ganhar tempo. Quando as organizações desconfiavam que eles estavam presos, tentavam resgatar o companheiro, e aconteciam tiroteios. Como terrorista sempre usava duas armas, quando encontrava o companheiro preso (que era levado pelos militares ao ponto e entrava sozinho, como isca para tentar prender mais militantes), eles decidiam reagir, e dava tiroteio. Outras vezes, eles tentavam se suicidar, se jogando embaixo de carros. Quando morria uma pessoa, você não podia chamar a perícia e isolar a área, porque eles andavam com cobertura, vinham e metralhavam a gente. Então, acabou o tiroteio, tinha morto? Levava para o DOI. Estava doente, ferido? Levava para o hospital. No DOI, o corpo ficava ali num lugar deitado, guardado. Eram pequenas as nossas instalações. E esse Marival dizia que eu botava os corpos em exposição. Onde é que eu ia botar? Deixava no pátio esperando chegar o rabecão. A gente entrava em ligação com o Dops, que providenciava tudo. Logo vinha o rabecão. Levavam os corpos, IML, autópsia, sepultamento. Tudo feito pela polícia. Isso que dizem, que eram os militares que iam lá para enterrar os corpos, é mentira. Mentira deslavada! Nenhum dos militares ia lá enterrar ninguém. Isso era missão da polícia. Nossa missão acabava quando o rabecão levava o morto embora.
Se vocês temiam um contra-ataque, porque não deixavam os corpos no local do tiroteio...
(Interrompendo) Para eles recolherem os terroristas?
Não havia um procedimento legal, de perícia na área?
Não podia fazer, não dava tempo. Minha filha, aquilo era uma guerra. Lidar com o terrorismo é guerra. Qualquer país que luta contra o terrorismo não faz isso, nem os Estados Unidos. Não pode, não dá para fazer porque eles vêm em cima. Quando você está numa guerra, é assim.
Mas a Convenção de Genebra...
(Ustra interrompe) Ah, bom! A Convenção de Genebra... Eles não estavam na Convenção de Genebra.
A Convenção de Genebra prevê que os mortos durante conflitos sejam identificados e suas famílias, informadas. As autoridades da época não violaram essa regra ao permitir que militantes fossem enterrados com nomes falsos, mesmo sabendo de quem se tratava?
Não. Não violamos regra nenhuma. Vou explicar por quê. Estou sendo processado por ocultação de cadáver de Torigoe (estudante de medicina Hirohaki Torigoe). Esse rapaz morreu em um tiroteio portando documento falso (com o nome de Mashiro Nakamura). No meu livro, está lá o nome da rua, a hora, tudo direitinho. Não sabia onde morava a família do Torigoe, mas botamos no jornal. Se a família fosse informada ou se os companheiros dele informassem a família, a família iria saber que ele tinha morrido. Por lei, a gente não podia enterrá-lo com o nome Hirohaki Torigoe. A gente achava que era o Torigoe pelas fotografias. Mas como enterrá-lo como Torigoe se ele estava com uma identidade verdadeira, tirada em um registro de identificação, através de uma certidão falsa que pegou lá no interior de não sei aonde? Tem até um caso de um militante que entrou na Justiça para voltar a usar o nome verdadeiro, e a Justiça negou. Ele só conseguiu depois, com aquela comissão que dá as indenizações. Imagina nós durante o combate, com o corpo ali insepulto, vamos procurar para saber se é Hirohaki Torigoe... A gente enterrava com aquele nome. O inquérito que ia para a Justiça dizia "tudo indica que se trata de Hirohaki Torigoe". Dali para frente, saíam à cata da datiloscópica dele em algum lugar do Brasil - desse Hirohaki Torigoe parece que levou seis, oito meses. Então, ele era obrigado a ser enterrado com aquele nome. Isso não é ocultação de cadáver, meu Deus do céu! E nem violação. O José Dirceu não viveu (com nome falso) não sei quantos anos lá no Paraná, teve filhos, fez negócio, fez isso e aquilo? Se ele tivesse morrido lá, iria ser enterrado com que nome? De José Dirceu ou com o que ele usava?
Nesse processo todo, as famílias não eram informadas.
Não sabíamos como informar as famílias. Esse Hirohaki Torigoe acho que nem a família sabia onde andava. Eles eram clandestinos.
Como o senhor se sentiria se não conseguisse enterrar um filho ou irmão?
Eu sentiria como qualquer ser humano sente. Mas, infelizmente, era guerra. Quando se está na guerra e tem que enterrar um soldado, como fica? Como é que fica a família? Infelizmente, não tínhamos como informar a família.
Como avalia os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade?
Vingança, revanchismo. A hora que eles desrespeitaram a lei que criou a comissão, que dizia que era para apurar tudo o que houve no regime de exceção e promover a reconciliação, a hora que eles disseram "negativo, só vamos apurar os crimes de agentes de Estado", deixaram de apurar o outro lado. Que reconciliação é essa? Isso não existe mais. Não vai dar certo isso aí, porque eles não estão cumprindo o que foi proposto. Eles querem a revanche, querem a vingança, querem doutrinar a opinião pública com fatos alarmantes contra nós, para anular a Lei da Anistia. O grande objetivo deles é nos botar na cadeia, acabar com a Lei da Anistia.
O senhor teme uma revisão da Lei da Anistia?
Nós lutamos para que o Brasil vivesse uma democracia. Era o nosso maior desejo. Mas acho que uma democracia existe quando existe uma independência dos três Poderes. Só que o Executivo manda em tudo. Está aí o mensalão para provar que quem manda no Legislativo é o Executivo. Algum nome indicado ao Supremo foi, por acaso, rejeitado pelo Senado? Algum embaixador, também indicado pela Presidência da República, foi rejeitado? Não há interdependência entre os Poderes. Estamos vivendo sob uma ditadura democrática. Não estamos vivendo sob a democracia. E uma maneira de provar isso é que a Lei da Anistia não está sendo respeitada. Estou com quatro, cinco processos nas costas e tenho a Lei da Anistia que me protege. Como é que os juízes aceitam isso? Como os procuradores aceitam isso? Como é que você está aqui me questionando se eu ocultei cadáver, se isso ou se aquilo? E a Lei da Anistia que prevê o esquecimento disso tudo?
No DOI, o senhor teve contato com o empresário Henning Boilesen, que teria financiado o regime e participado de sessões de tortura?
Conheci o Boilesen socialmente, em um jantar. Durante o meu comando, uma vez no Natal, ele foi lá levar um lampião a gás que estavam lançando. Ele estava distribuindo aquele presente para vários órgãos. Eu o recebi na minha sala e o levei até o portão para me despedir dele. Dizem que ele financiava o DOI, a mim ele nunca financiou. Dizem que ele visitava o DOI, só se foi em outro comando, não no meu. Nunca recebi um tostão do Boilesen.
O senhor teve algum envolvimento com o sequestro dos uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Díaz, que ocorreu na capital gaúcha em 1978, quando o senhor comandava o 16º Grupo de Artilharia de Campanha Autopropulsado, em São Leopoldo?
Soube disso pelo jornal. Quando isso aconteceu, já tinha deixado o Serviço de Informações, e lá, quando a gente sai, sai. Depois vai fazer outra coisa e não toma mais conhecimento. O Jair Krischke (presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos) me acusa de ter participado disso.
Tenho sentido vontade de processá-lo e vou exigir danos morais. Como é que eu ia participar do sequestro? Iria deixar o comando do GAC? Por coincidência, depois fui para o Uruguai, mas porque era perto de Santa Maria e poderia visitar meus pais de carro.
O fato de o senhor ser amigo do então delegado e chefe do Dops gaúcho, Pedro Seelig, e do coronel Átila Rohrsetzer, ex-diretor da Divisão Central de Informações, além de estar no RS na época, não passou de coincidência?
Não tem nada a ver. Nunca soube do sequestro.
Como são os encontros anuais dos ex-integrantes do DOI-Codi?
Nos reunimos uma vez por ano, em um determinado lugar, como uma churrascaria. Três quartos dos ex-integrantes já morreram, mas vão os filhos muitas vezes. Alguns estão bem velhinhos, esclerosados. A última vez que fui, em novembro, tinha uns 150. A gente conversa sobre o dia a dia, ninguém mais tem condição de conspirar. É um bando de velhos. Eles fazem questão da minha presença.
Como o senhor se sentiu ao ver chegarem ao poder pessoas que estiveram do lado oposto durante o regime?
Ah, vejo, com satisfação, que o nosso trabalho não foi em vão. Porque nós lutamos para que isso acontecesse, para que o povo elegesse, dentro da democracia, aqueles que queriam no governo. As organizações queriam implantar o comunismo pela luta armada, o que não era possível. Mas, depois, eles optaram por via democrática, se candidataram, organizaram partidos, estão no poder.
Me sinto realizado. Infelizmente, eles não estão produzindo a democracia que gostaríamos de ter. Estamos vivendo essa ditadura democrática que eles estão implantando.
Entre seus colegas militares e grupos conservadores, o senhor é visto como um herói nacional. Já para a esquerda e militantes dos direitos humanos, o senhor é um monstro. Quem, afinal, é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra?
Tiveram vários DOIs no Brasil. Herzog (jornalista Vladimir Herozg, morto em 1975, em São Paulo) não é comigo, Fiel Filho (metalúrgico, morto em 1976, em São Paulo) também não. Mas me sinto um homem realizado dentro da minha profissão, me sinto um homem tranquilo. Realmente, foi difícil a fase que vivi. Foram momentos muito tensos e difíceis, mas eu achei que era necessário fazer aquilo que fiz para que você tenha o que tem hoje. Eu ajudei a fazer isso.
E o que exatamente o senhor fez, que foi necessário?
Foi necessário combater o terrorismo, entrar em combate com eles nas ruas. Foi necessário? Foi. Se não fosse entrar em combate, eles estavam mandando até hoje.
Quais são as causas dessas manifestações que ocorrem no país desde junho passado (de 2013)?
É uma demonstração de que o povo está cansado. Está cansado de corrupção, de impunidade, dessa roubalheira toda, dessas coisas que estão acontecendo, entendeu? Está cansado da falta de segurança, dos hospitais quebrados, de ver o Brasil dando dinheiro para Cuba, e os nossos portos precisando de dinheiro e a soja não podendo ser exportada porque os portos não estão aparelhados. Está faltando dinheiro para os hospitais, mas dá dinheiro para ditadores africanos, que têm fortunas guardadas.
Não entendo como um governo democrático bajula tanto governos ditatoriais. Cuba é ou não é uma ditadura? É uma ditadura, gente. Aquilo lá não é democracia de jeito nenhum. PCdoB não mandou uma mensagem para a Coreia do Norte? Pelo amor de Deus, Coreia do Norte? Mas o povo se retraiu por causa dos black blocs, que, para mim, foi algo plantado. Esses movimentos sempre começam em São Paulo, porque tem que desestabilizar o Alckmin. O PT, em 2006, fez a mesma coisa. Acho que isso não vai dar certo. Estão metendo os pés pelas mãos.
Como o senhor avalia os governos Lula e Dilma Rousseff?
O governo Lula teve uma sorte muito grande, de pegar uma época boa economicamente, pegou os respaldos do Plano Real. Ele tem muito jogo de cintura, fez um governo bom. O Lula nunca foi comunista, nunca foi terrorista. A Dilma, não. Ela tem uma formação ideológica, foi de organização terrorista, já pensa diferente. A situação econômica não está boa. Esse negócio dos movimentos sociais dela está passando dos limites. O governo deu dinheiro para o MST. A marcha deles em Brasília custou R$ 1 milhão ou R$ 2 milhões. Aquele bando de gente chegou, fizeram o que fizeram, quiseram invadir o STF. Nessa tentativa de invasão, teve 32 feridos, dos quais 30 policiais. E, no dia seguinte, a dona Dilma não recebe os militares, e recebe os sem-terra com todas as honras e pompas. Acho que está havendo uma troca de valores.
A presidente Dilma Rousseff afirmou, recentemente, que pode acionar as Forças Armadas para conter protestos violentos durante a Copa. Qual a sua opinião?
Vai ser muito ruim. Nosso soldado não é preparado para isso. Não somos doutrinados e não temos equipamentos nem armamento para esse tipo de manifestação. Aí a polícia entra em greve porque quer mais salário, e os militares que são mal pagos são jogados na bucha de canhão, para enfrentar o povo. Com que armamento? Vai atirar no povo e o povo se revolta contra o Exército? Dilma tem que combater com os meios que ela tem. O Exército não é para isso. Não temos preparo. Soldadinho, recruta de três meses vai enfrentar isso se policial está levando surra de black bloc? Aí, a gente vai lá para desmoralizarem a gente? Ou vai matar gente? Pelo amor de Deus.
O Brasil precisa de uma lei antiterrorismo, como a que está para ser votada no Senado?
Se o senhor pudesse voltar no tempo, sabendo que os três anos e quatro meses no comando do DOI-Codi iriam marcar toda a sua trajetória, aceitaria, mesmo assim, o convite para chefiar o órgão?
Sim. Eu era militar e tinha que aceitar. Achei, também, que não era uma ordem absurda, porque, no Exército, tem uma coisa: ordem absurda não se cumpre. Fui designado, o comandante confiou em mim. Faria de novo, sim.
No documentário Verdade 12.528, o ex-ministro Franklin Martins diz: "Por que o Ustra guarda silêncio? Por que o Ustra esconde o Tibiriçá, o seu nome de guerra como torturador? Por que ele não fala dos seus crimes? Porque ele é incapaz de defender o que ele fez à luz dos valores mais profundos da sociedade humana". O raciocínio do ex-ministro está correto?
Acho um absurdo o que ele está falando. Primeira coisa: Doutor Tibiriçá... eu nunca me escondi com nome de Doutor Tibiriçá. Sabe qual foi a história do Doutor Tibiriçá? Uma vez eu estava lá interrogando um preso que estava chegando, conversando com um preso que tinha acabado de chegar e eu não queria que ele soubesse quem era eu. E aí chegou um coitado de um, de um... Ele era da antiga guarda não sei do que, que foi juntada com a polícia militar. Era um capitão de idade, sem maldade, que chegou dizendo: "Major Ustra, major Ustra, eu queria saber não sei o quê...". Depois, eu cheguei para ele e disse assim: "Fulano, pelo amor de Deus, não me chama de major Ustra na hora que estou falando lá, me chama de Tibiriçá". Falei assim. Não estava me escondendo com o nome de Tibiriçá, porque todos os ofícios eram assinados como major Ustra. É um absurdo eu querer me esconder com o nome de Tibiriçá. Primeira mentira. A outra: mas que crimes eu cometi? Franklin Martins não é um terrorista que sequestrou o embaixador americano? Quem é este terrorista para dizer que eu cometi crime? Ele que tem que assumir que era terrorista e cometeu crimes. Sequestro é crime - hoje, hediondo. Eu justifico todas as acusações contra mim, mas ele não pode dizer que não cometeu crime.
O senhor se arrepende de alguma coisa que fez em toda a sua vida?
Honestamente, não. Não me arrependo. Não tenho nada que me arrepender.
Como o senhor gostaria de ser lembrado pelas futuras gerações?
Como um soldado, um militar que trabalhou, cumpriu ordens e ajudou o país a voltar a normalidade. Que lutou com dignidade e humanidade, principalmente. Não cometi maldade. O dia em que morrer vou tranquilo na presença de Deus, muito tranquilo. Tranquilo mesmo. Não cometi nada de errado.