O primeiro indício que a atriz Loubna Abidar teve de que sua vida estava prestes a mudar foi no voo de volta para casa, no Marrocos, após a estreia do filme "Much Loved", no qual interpreta uma prostituta, pois ficou chocada quando uma comissária disse que era "uma vergonha para o Marrocos e as marroquinas".
Dez meses depois, Loubna, de 30 anos, ainda é uma celebridade na sua terra natal, embora pelos motivos errados, e agora exilada. Ela recebe centenas de mensagens de ódio e ameaças nas redes sociais. E também está bem cotada para ganhar a maior honra do cinema da França – um César – em fevereiro.
– As pessoas têm medo da verdade. Não deveríamos ser um país que tem medo da arte. Quero que a mulher marroquina acorde – disse ela, referindo-se às reações de raiva no Marrocos a "Much Loved", que retrata a dura realidade da prostituição no país.
Os problemas de Loubna começaram em maio, quando o filme dirigido por Nabil Ayouch estreou no Festival de Cannes. Até então, ela havia aparecido apenas em pequenos papéis no teatro, em programas de televisão e em alguns filmes de pouco destaque. Quando embarcou naquele voo para o Marrocos, um trailer do filme fazia sucesso na internet.
Ele e outros vídeos, que geraram centenas de milhares de visualizações no YouTube, mostraram Loubna e três outras atrizes encenando prostitutas festejando, xingando e se comportando libertinamente com clientes em Marrakesh. Muitos acusaram o filme de perpetuar um clichê que fere a imagem das marroquinas em geral.
– Os vídeos passaram uma mensagem totalmente errada aos espectadores. O filme não fala só de prostituição. É um retrato de quatro mulheres e fala sobre muitos dos males do nosso país, como a corrupção e o fato de que os turistas exploram sexualmente nossas mulheres e crianças – disse ela.
O Ministério da Comunicação do Marrocos reagiu com rapidez após a estreia do filme e o baniu, dizendo que prejudicava "os valores morais e a dignidade das marroquinas, bem como a imagem de Marrocos".
Loubna disse que achava que a revolta iria passar. Ficou no Marrocos, apesar das ameaças, sempre usando um niqab – um lenço na cabeça que cobre o rosto, mostrando apenas os olhos – para evitar ser reconhecida. Em novembro, porém, baixou a guarda. Acreditando que estaria segura depois de ganhar prêmios de melhor atriz em festivais de cinema em Namur, Bélgica, e em Angoulême, França, resolveu sair de casa sem o véu. Três homens bêbados a atacaram brutalmente, conta ela, comprovando a acusação ao postar um vídeo mostrando seu rosto ferido.
– A única coisa que fiz de errado foi estrelar um filme que ninguém viu – diz no vídeo.
Loubna está tentando esquecer essas lembranças ruins: mudou-se para a França, onde diz se sentir segura, para onde também levará sua filha de seis anos após o fim do ano letivo em Marrakesh.
Quando um amigo ligou com a notícia de que ela havia sido indicada ao César – juntamente com Catherine Deneuve, Isabelle Huppert e outras celebridades francesas –, achou que se tratava de uma brincadeira. Nunca uma marroquina recebeu uma indicação ao prêmio.
– Essa nomeação me deu força e me deixou confiante – disse em uma entrevista recente no bar Pavillon de la Reine, no Marais, em Paris.
Nascida em uma família modesta em Kasbah, bairro da classe trabalhadora na velha cidade de Marrakesh, Loubna se mudou para Paris aos 17 anos depois de se casar com um francês mais velho. Divorciaram-se alguns anos depois, e ela se casou com um brasileiro e se mudou para perto da cidade de Recife, no Brasil. Teve uma filha, Luna Estrella, antes de se separar do segundo marido e voltar para o Marrocos, onde começou a ter aulas de atuação.
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Loubna se descreve como uma feminista. Ser a estrela de um filme com tema controverso não é fácil em uma sociedade muçulmana conservadora como a do Marrocos. Diz que sempre se empenhou na defesa dos direitos das mulheres e acredita que isso tenha começado com suas primeiras experiências com as prostitutas que tão habilmente retrata no filme.
Loubna conta que essas mulheres faziam parte da sociedade em que cresceu e que as encontrava nos hammams, os banhos públicos onde as marroquinas relaxam, ou em salões de beleza.
Quando soube que Ayouch estava trabalhando em "Much Loved", quis participar. Ela sabia que o diretor sempre escolhia atores amadores para os papéis principais, por isso tentou se passar por uma prostituta, mas acabou dizendo a verdade e admitiu ter alguma experiência como atriz. A princípio, Ayouch não quis lhe dar o papel e a contratou como consultora, usando seus conhecimentos das ruas para treinar as mulheres que ele escolheu e para ajudar com os diálogos, tornando-os mais autênticos.
– Nabil não conhece a linguagem crua das ruas, então sempre me consultava. Eu tinha umas cinco ou seis funções simultâneas no set – relembra Loubna.
Ela o ajudou durante oito meses. Porém, quando as filmagens estavam prestes a começar, o diretor ainda não havia encontrado ninguém para interpretar Noha, a personagem principal. Por fim, acabou cedendo e ela ficou com o papel.
– Loubna tem uma força de caráter excepcional. É uma lutadora, uma combatente. Com ela, senti que poderia levar a personagem de Noha aonde quisesse. Para o lado do naturalismo bruto e verdadeiro, sem reservas – disse Ayouch em uma entrevista.
Como Noha, a pequena e delicada Loubna interpreta uma mulher forte e confiante que cuida de suas amigas. Na realidade, ela parece muito mais jovem e quase frágil.
Na França, recebeu grande apoio dos jornalistas e do pessoal da indústria cinematográfica, mas há o temor de que, com o aumento da islamofobia no país, alguns tentem se aproveitar de sua situação para estigmatizar ainda mais os muçulmanos.
– Agora é a hora perfeita para ela estar na França. Ela vai falar em nome de todas as muçulmanas e vai se tornar o símbolo das mulheres que foram salvas do patriarcado pelo Ocidente", acrescentou, com algum sarcasmo – disse Zakia Salime, professora associada de Sociologia na Universidade Rutgers e autora do livro " Entre o Feminismo e o Islã: direitos humanos e a sharia no Marrocos".
Por um tempo, Loubna e Ayouch enfrentaram acusações criminais no Marrocos por "incitar a libertinagem", mas um juiz recentemente arquivou o caso. Sempre com seu jeito decidido, ela continua determinada a viver livremente e a não fazer concessões para agradar os marroquinos. Vai lançar um livro em maio sobre sua experiência na França, e espera que ele inspire as mulheres a enfrentarem lutas similares contra as tentativas de suprimir a arte e o direito de expressão.
– Eles quiseram me calar. Quiseram me assustar, mas nunca ficarei em silêncio – completa Loubna.
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