Esqueça a Califórnia, que abriga a sétima economia do mundo e indica mais de 10% dos delegados ao colégio eleitoral destinado a eleger o presidente dos Estados Unidos. Ou Washington, Distrito de Columbia (D.C.), sede do governo federal e responsável pelo envio de três dos 538 delegados. Por mais importante que cada um dos 50 Estados americanos possa ser numa eleição presidencial americana, tudo sempre começa - e às vezes termina - em Iowa.
Um episódio banal ocorrido em 1972 transformou esse Estado do Centro-Oeste, que a maioria dos americanos tem dificuldade de localizar no mapa, em carro-chefe das campanhas presidenciais. Naquele ano, o Partido Democrata precisava reorganizar o cronograma de primárias, e a única solução foi antecipar para fevereiro, em pleno inverno, os caucuses (assembleias) do desimportante Iowa. Foi o que bastou para o Estado atrair a atenção de toda a imprensa do país, forçando os republicanos a adaptar o próprio calendário. No dia 1º de fevereiro, essa tradição de 44 anos será revivida, com a realização da primeira etapa dos caucuses de Iowa, largada oficial da corrida à Casa Branca.
Como funcionam as eleições americanas
Para concorrentes dos dois partidos, obter a maioria dos votos em Iowa não significa necessariamente garantir a vaga de candidato. Para ficar em um único exemplo, o democrata Bill Clinton amargou um quarto lugar no Estado em 1992, mas chegou à Casa Branca no ano seguinte e de lá só saiu em 2000. O Efeito Iowa é, sobretudo, midiático - e se resume aos resultados da primeira parte do processo eletivo, no nível mais baixo, o dos chamados precints (subdistritos). No total, 1.681 precints escolherão candidatos na primeira noite de fevereiro. Os vencedores dessa fase serão considerados, para todos os efeitos, "vitoriosos de Iowa" - mesmo que venham a perder no cômputo final do Estado.
Até o dia 1º, nada do que ocorrer na campanha eleitoral americana fora dos limites de Iowa terá muita importância. E, se a disputa no Estado for um reflexo do que virá depois, 2016 será um ano eletrizante em termos políticos. Faltando oito dias para a votação, o quadro permanece indefinido nos dois maiores partidos. Mais do que isso: os candidatos com potencial para vencer em Iowa segundo as pesquisas, Donald Trump (republicano) e Bernie Sanders (democrata), são marginais em suas próprias máquinas partidárias.
- Há nos EUA um cenário em que o eleitorado talvez esteja disposto a apostar em candidatos que não sejam típicos representantes do establishment. Em outros países, surgem novas lideranças. Nos EUA, dentro dos próprios partidos, aparecem candidatos que expressam novas realidades, como Barack Obama em 2008. Isso não significa que tenham chance de vencer - afirma Luis Fernando Ayerbe, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor de De Clinton a Obama: Políticas dos Estados Unidos para a América Latina (Editora da Unesp).
Simpatizante de Sanders exibe cartaz com os dizeres: "Socorro! Sou uma esquerdista
no Alabama" (Foto: Hal Yeager/AFP)
Bilionário foi de início visto como excêntrico
Você provavelmente nunca ouviu falar do Partido Objetivista ou do Partido da Marijuana dos Estados Unidos. Essas e dezenas de outras organizações vicejam à margem do sistema político, dominado por duas agremiações nacionais: Democratas e Republicanos.
O perfil dos dois grandes partidos mudou, mas pode-se dizer que, nos últimos 80 anos, democratas firmaram-se como defensores do Estado de bem-estar e dos direitos civis, enquanto republicanos abraçaram a não-intervenção do Estado na economia e o tradicionalismo nos costumes. Essas não são, no entanto, fronteiras rígidas. Na maior parte das grandes questões políticas dos últimos 30 anos, por exemplo, democratas e republicanos marcharam juntos - a invasão do Iraque, em 2003, é o exemplo mais marcante.
Em momentos cataclísmicos, podem ocorrer mudanças na paisagem partidária. Foi o caso da Grande Recessão iniciada em 2008, que levou à Casa Branca o primeiro presidente negro - Barack Obama, não por acaso um dos poucos democratas que se opuseram à Guerra do Iraque. Do lado republicano, a contrapartida a Obama foi o movimento chamado Tea Party, que pregava redução do governo e diminuição de impostos. Em 2012, decepcionados com Obama, alguns de seus eleitores impulsionaram o movimento Occupy Wall Street, que se espalhou por dezenas de cidades americanas, mas submergiu após a desocupação do Parque Zuccotti, em Nova York, pela polícia.
A maioria dos analistas imaginava que a eleição presidencial de 2016 seria um grande plebiscito sobre os oito anos de administração Obama - e que os republicanos seriam caudatários naturais da indignação do americano comum. O que ocorreu, porém, foi relativamente imprevisto: as primárias republicanas e democratas foram, até o momento, dominadas por candidatos que subverteram as agendas de seus partidos.
Entre os republicanos, a estrela é o bilionário Donald Trump, herdeiro de magnatas do ramo imobiliário, mas que se tornou conhecido nos EUA como produtor e apresentador de reality show. No início, sua campanha foi vista como pouco mais do que uma excentricidade - o site Huffington Post, por exemplo, decidiu situá-la na cobertura de entretenimento. Em seguida, ele colocou seu estilo histriônico a serviço de bandeiras conservadoras - zombou de um repórter portador de deficiência, defendeu a expulsão de mexicanos e propôs o banimento de muçulmanos dos EUA. Seus números dispararam.
- Trump é o homem de sucesso, sejam suas conquistas legais ou não, e isso lhe dá prestígio junto a parte do eleitorado. É o candidato dos conservadores WASP (sigla de branco, anglo-saxão e protestante, em inglês), que não compreendem os EUA como um país multiétnico e almejam resgatar uma pureza de valores e princípios que talvez nunca tenha existido de fato. Mal comparando, é uma Sarah Palin (candidata a vice-presidente em 2008, notória pelas posições conservadoras) mais articulada e com total conhecimento da mídia - afirma Gabriel Pessin Adam, professor de Relações Internacionais da Unisinos e da ESPM-Sul.
Senador adverte Wall Street
Ele tem 74 anos, autoproclama-se socialista (de acordo com a terminologia usada nos Estados Unidos, alguém que defende o Estado de bem-estar social vigente em países como Suécia e Noruega) e adverte Wall Street: "Ganância não é bom". A surpresa das primárias democratas chama-se Bernie Sanders, senador por Vermont, Estado perto da fronteira com o Canadá.
Em pesquisa divulgada na quinta-feira pela rede de TV CNN, Sanders tem 51% das preferências em Iowa, contra 43% de Hillary Clinton, ex-secretária de Estado e apoiada pelo presidente Barack Obama. Nacionalmente, Hillary está à frente de Sanders por cerca de oito pontos percentuais, mas a vantagem vem caindo.
Surpreendida pelo avanço de Sanders, a equipe de Hillary ajustou o discurso. Ela não é páreo para o veterano senador em tópicos como combate à desigualdade (os Clinton são bilionários) ou restrição ao poder do dinheiro na política (a ex-secretária fatura milhões como palestrante a convite de instituições como a Goldman Sachs). Sua tática passou a ser a de afirmar que as propostas de Sanders são inexequíveis e fantasiosas.
- Não estou interessada em ideias que parecem boas no papel, mas nunca irão funcionar no mundo real - disse Hillary.