A maioria dos santa-marienses e gaúchos em geral já se encaminhava para dormir quando Elissandro Spohr, o Kiko, pivô da maior tragédia da história gaúcha - a morte de 242 jovens no incêndio na boate Kiss - encerrou seu depoimento à Justiça, na terça-feira. Eram 22h30min. Foi a maior de todas as audiências já realizadas sobre a tragédia que enlutou Santa Maria, ocorrida em 2013. Quase nove horas de depoimentos, com apenas quatro intervalos de poucos minutos, para a assistência, que minguava a cada hora se recompor. E como Kiko, um dos donos da danceteria, se comportou?
Veio disposto ao enfrentamento. Apesar de magro, pálido, com olheiras e visual descuidado, estava energético. Nem deixava os interrogadores terminarem as frases e já respondia. Parecia esperar cada questionamento - talvez tenha treinado, sabia que das respostas depende um futuro atrás das grades ou não. Estava seguro e disposto a apontar nomes, datas, fatos. E como apontou...
O alvo maior foram as autoridades. Primeiro, o Ministério Público, por ter firmado com ele um Termo de Ajustamento de Conduto (TAC) que permitiu a boate funcionar:
- Se o promotor achou que estava bom, quem sou eu para duvidar? Eu tinha alvará. Só depois do incêndio disseram que a Kiss era uma arapuca, antes disso todos viram e ninguém apontou problema grave.
O Corpo de Bombeiros, também pela demora em fazer vistorias.
- Eu pedia, insistia, mas sempre me adiavam a visita. Informaram que tinha uns 1.200 empresários na minha frente. Até me indicaram colegas deles para fazer algumas reformas necessárias - criticou Kiko.
Por fim, o dono da Kiss falou da prefeitura. Ele enumerou todas as idas e vindas nas diversas secretarias, uma discordando da outra em relação ao que a boate deveria ter para funcionar. Quando obtia uma licença, perdia outra, descreveu Kiko.
- Membros da prefeitura deveriam estar aqui comigo, sentados diante do juiz. Inclusive o prefeito Cezar Schirmer. Eu posso até ter culpa, mas não sou assassino. Ninguém é - desabafou.
Ao atacar, ele foi detonado. Três promotores de Justiça se revezaram ao microfone, tentando mostrar que o colega deles que assinou o TAC recomendou reformas que não teriam sido feitas por Kiko. O dono da boate respondia de bate-pronto e chegava a apontar o dedo para os integrantes do MP, dizendo que a instituição foi irresponsável.
Kiko também teve bate-boca com o defensor de Marcelo de Jesus, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira que disparou o artefato luminoso causador do incêndio na Kiss. É que o dono da boate responsabilizou o músico "por uma brincadeira infeliz, que nos colocou no banco dos réus".
O defensor de Jesus contra-atacou, perguntando:
- Os guarda-corpos que impediram a saída dos clientes na hora do incêndio, quem colocou na Kiss? Foi a banda? Quem fez a boate sem saída de emergência? Quem permitiu que tudo funcionasse dessa forma, sem fiscalizar? Foi a banda? - desafiou o advogado Omar Obregon.
Kiko também foi interrogado por três advogados de acusação, representantes das vítimas. Eles questionaram ponto a ponto as obras, mas concordaram com o réu na questão de que a boate funcionava porque as autoridades deixaram. Esses advogados inclusive querem usar o depoimento de Kiko para comprovar que as famílias têm razão ao criticar omissões do Ministério Público e da prefeitura que permitiram a danceteria funcionar.
Kiko manteve postura discreta e não agressiva em relação ao seu sócio na Kiss, Mauro Hoffmann. A impressão, para quem assistia, é de um pacto de não-agressão entre os dois.
- O Mauro quase não aparecia na boate. Era meu sócio financeiro, apenas - minimizou Kiko.
Hoffmann será o próximo interrogado, nesta quinta-feira, em audiência judicial em Porto Alegre.
Ao final do depoimento, Kiko chorou. Eram 22h30min e terminava um interrogatório de três horas feito por seu próprio advogado, Jader Marques. Kiko olhou para familiares de vítimas na plateia e declarou, entre lágrimas:
- A Kiss era minha vida. Eu acordava e ia para lá. Eu estava lá na hora do incêndio, com minha mulher grávida. Eu não imaginava que aquilo pudesse ocorrer. Eu não queria, eu não queria...
A plateia ficou em silêncio. Kiko saiu em silêncio.
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