No dia seguinte à vitória de Mauricio Macri nas eleições presidenciais argentinas, os argentinos, tão propensos ao uso da palavra para ler e também para estabelecer apelidos e slogans, saíram-se com esta: o presidente eleito fez o "pronunciamento pela governabilidade". O que isso quer dizer? Que Macri aposta no diálogo e na união nacional para cumprir a difícil missão de ajeitar a economia e administrar sem maioria parlamentar.
Se é certo que o cômputo final das votações indicaram um país dividido, com vantagem macrista de pouco mais que dois pontos percentuais, também parece claro que a disposição do novo presidente começa a dar frutos. Mesmo sendo tido como desafeto da presidente Cristina Kirchner, Macri se reunirá com ela amanhã, às 19h locais (20h de Brasília), na residência oficial de Olivos, para tratar de uma transição vista como difícil.
Com o gesto de receber o rival em seguida depois da vitória dele, Cristina demonstra que entendeu o recado das ruas: o país quer menos intransigência e mais foco em problemas como a inflação, o desemprego, a escassez de moeda forte e a ausência de investimentos externos.
- Esta mudança não pode se deter em vinganças e ajustes de contas - disse o presidente eleito, nas suas primeiras palavras, às 23h de domingo. Ao que parece, Cristina entendeu que ali estava sendo erguida uma bandeira branca.
O mesmo parece ter entendido o adversário no segundo turno, Daniel Scioli, amigo de Macri. Os dois, na medida em que os votos iam sendo apurados, comunicavam-se por telefone. De forma muito civilizada e gentil, combinaram o momento em que Scioli reconheceria a vitória macrista, permitindo que Macri, só então, fosse ao seu bunker falar como presidente.
- Há um clima claro de mudança. Terminou um ciclo e começa outro. Temos que encerrar a etapa dos confrontos e da tensão. Estamos fazendo história e temos um longo caminho pela frente - disse, nesta segunda-feira, Marcos Peña, chefe de campanha de Macri e já definido como futuro chefe de gabinete (Casa Civil).
Macri está preocupado com um retrospecto histórico que o fustiga: nos últimos 50 anos, tirando a ditadura militar (1976-1983), apenas governantes peronistas conseguiram terminar seus mandatos. Os casos mais recentes e notórios são os dos radicais (da União Cívica Radical - UCR, tradicional rival do peronismo) Raúl Alfonsín e Fernando de la Rúa, que tiveram de deixar seus governos antes do tempo, pressionados por sindicalistas intransigentes em suas greves.
Palavra "diálogo" se tornou mantra
A equipe mais próxima de Scioli, porém, já cuida disso. A palavra "diálogo" se tornou um mantra. A aposta é que o kirchnerismo (movimento político liderado por Néstor e Cristina Kirchner, que governou o país nos últimos 12 anos) se sinta impelido a participar de um grande acordo nacional.
O senador eleito Federico Pinedo, por exemplo, acredita que haverá certo pragmatismo cristinista: se ela puser seus seguidores a bloquear estradas, fazer greves e inviabilizar o novo governo, estará virando as costas para a sociedade e deixando para Sergio Massa, dissidente kirchnerista e terceiro colocado nas eleições presidenciais, a primazia de ser o opositor ilustrado, transigente e moderado.
Diretor do Centro de Investigações Políticas (Cipol), Marcos Novaro fez um alerta:
- É essencial que a alegria de uns não ocorra à custa dos outros, para que o ambiente faccionado dê lugar à convivência. Também é importante que o regresso do pluralismo não esteja associado à escassez e a um governo débil.
Macri, portanto, terá de acertar o tom. Aproximar-se de adversários, negociar com quem pensa diferente, mas sem perder o foco de um governo que terá, obrigatoriamente, de gerenciar uma crise. Pretende transparecer boas intenções e contar com o possível esfacelamento do cristinismo (algo mais específico que o próprio kirchnerismo), uma vez que esse movimento se sustenta pela liderança da atual presidente. Com ela fora do poder, tende a arrefecer.
Para dar sustentabilidade a um governo que surge sob a pressão das finanças em frangalhos, além da primeira visita de Macri à presidente Dilma Rousseff para aparar arestas com o Brasil e alinhavar o câmbio dos dois países, o governo eleito já definiu: duas missões oficiais, com funcionários e empresários, partirão para o Exterior. Uma irá à China, em busca de recursos. Outra, aos Estados Unidos, onde pretende começar a virar a página das desinteligências com credores internacionais. Isso é visto como essencial para a retomada dos investimentos externos na Argentina.
Com o país dividido, Macri tratará, também, de diminuir as desconfianças em relação a sua personalidade. Durante a campanha, ele já foi a bairros pobres e procurou desfazer a imagem de filho de família rica que se aventurou como dirigente no esporte (foi presidente do Boca Juniors e conquistou títulos importantes pelo clube) e assim se catapultou para a política.
Agora, vem o próximo passo. Para desfazer a imagem de que ele representa o liberalismo dos anos 1990, que puseram o país na mais grave crise econômica por ele já vivida, preserverá empresas nacionalizadas e manterá programas sociais.
- O importante é que uma nova fase começa. O estilo intransigente no poder fica para trás. O diálogo é um avanço. Macri, a partir de agora, precisa mostrar capacidade para ter superioridade ao manter as conquistas do kirchnerismo e avançar em relação ao que faltou, com o fim do isolamento argentino, por exemplo. É uma equação difícil, mas que ele deve se empenhar por conseguir. Ele fala em "mudança de época". Que seja para o bem - disse o economista Enrique Guillermo.
Primeira entrevista do presidente eleito tem tom conciliador
Na primeira entrevista coletiva, às 9h locais desta segunda-feira, Macri disse que os argentinos têm mais aspectos a uni-los do que a dividi-los. Voltou a defender o diálogo, repeliu o clima de tensão política e pediu "um pouquinho de paciência".
Usou expressões como "não me deixem só", "a Justiça terá total independência" e "temos de pôr o país em marcha". Confirmou a primeira visita ao Brasil, tratando essa medida como essencial para o sucesso do seu governo. A data ainda será marcada.
Macri adiantou: a relação com os países vizinhos terá de ser "previsível", e ele pedirá o cumprimento da cláusula democrática do Mercosul, exigindo que o governo venezuelano deixe de ter presos políticos.
A entrevista foi tratada como uma novidade. Macri prometeu que outras ocorrerão, marcando aí também uma diferença com o atual governo, que costuma se manifestar em redes nacionais de TV. O espaço antes existente para entrevistas na residência oficial de Olivos será recuperado.
Macri foi eleito para um mandato de quatro anos e, na primeira metade desse período, será obrigado a estabelecer alianças no Congresso, onde o kirchnerismo tem maioria absoluta no Senado e é a primeira força na Câmara dos Deputados.