O futuro presidente da Argentina é uma incerteza que também nos afeta. Acompanho esse país desde janeiro de 1962, quando a série de reportagens "Buenos Aires dança o tango dos gorilas" previu o golpe que derrubou o presidente Arturo Frondizi e me deu um prêmio jornalístico. Pela primeira vez, "gorila" aparecia na imprensa brasileira sem ser um orangotango africano. A Argentina era ainda "o celeiro do mundo" e sua capital tinha o esplendor de Paris e Nova York. Anos depois, quando símios de todo tipo mandavam na América Latina, a Argentina se redemocratizou e Perón abriu o país aos brasileiros no exílio.
Em 1974 troquei a Cidade do México por Buenos Aires. Vivi o vácuo político da pós-morte de Perón com os argentinos matando-se nas ruas. Depois, o golpe militar direitista de 1976 e sua violência escancarada. Saí em 1977, com a Argentina afogando-se em sangue e crime.
Finda a ditadura, com a eleição do presidente Alfonsín voltei por vontade própria em 1983 e lá permaneci mais 18 anos. No juízo das Juntas Militares, durante oito meses conheci a perversão que fez "desaparecer" 20 mil presos políticos. Pela primeira vez nas Américas, os chefões de uma ditadura foram condenados a prisão perpétua.
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A Argentina dava ao mundo um exemplo de apego à Justiça e ao futuro. Depois, no governo Menem, numa nação há séculos fraturada, o comandante do Exército, general Martín Balza, em nome da paz, publicamente pediu "perdão" pelo golpe militar e "demais crimes das Forças Armadas" - das prisões aos assassinatos - e foi imitado pela Marinha e Aeronáutica.
Mas a ilusão do neoliberalismo iniciava-se no mundo e Menem adotou a novidade. Com dólar e peso igualados em 1 x 1, a mágica da prosperidade fácil enterrou a indústria argentina em dois anos. Até os têxteis de lã (ao nível dos ingleses) deram lugar a importados de má qualidade "made in Asia".
Nesse diapasão, a crise de 2001 (hiperinflação, estagnação e desemprego) fez desaparecer a moeda. Veio o escambo: pequenos e médios produtores trocavam entre si o que aparecesse. Mas a terra é rica e a economia se refez. A Argentina, porém, jamais voltou à pujança antiga.
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Os 12 anos dos governos imperiais de Nestor e Cristina Kirchner desarticularam os partidos, que lá tinham tradição, conteúdo e programas. Com maioria no Congresso, o poder unipessoal da presidente aboliu o diálogo e a crítica. Seus atos de governo começam, sempre, no ataque à imprensa independente e à liberdade de informar.
Mas a visão totalitária do pensamento único não se limita a Cristina e sua grei. Inoculou-se na oposição e criou o PRO, partido do ex-presidente do Boca Juniors, Maurício Macri, atual prefeito da Capital, que disputará o segundo turno da eleição presidencial com Daniel Scioli, governador da província de Buenos Aires e apoiado pela presidente, pelo menos em teoria.
O multimilionário Macri é um arremedo "bonitão" do norte-americano Trump, da ultradireita republicana. Anos atrás, fui entrevistado junto com ele no programa de TV de Mariano Grandona, de maior audiência à época, por lá. Íamos bem, até que Macri, ao saber onde eu nascera, interrompeu:
- Se é brasileiro, não pode falar sobre a Argentina!
Meses antes, com dólar "barato", ele havia comprado, no Sul do Brasil, a fábrica de bolachas Izabella e outras. Isto, um argentino podia...
E Daniel Scioli? Perdeu um braço em acidente de motonáutica, mostra-se humilde e sabe ouvir, o que pode ser alta credencial num país aturdido pela demagogia alucinante dos 12 anos do casal Kirchner. Mas Cristina diz que o apoia e assim...
No dia de Finados, além de nossos mortos, pensemos na pujança argentina que morreu e não ressuscitou.
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