A troca de mando político na Argentina em 10 de dezembro, a adoção de um ajuste fiscal rigoroso por um desgastado governo brasileiro e o favoritismo da oposição nas eleições legislativas venezuelanas do próximo dia 6 são os casos mais emblemáticos de uma mudança na América do Sul. A chamada "onda rosa", com governos de centro-esquerda vocacionados para programas sociais parece estar chegando a um momento de grande desafio ou até ao ocaso.
Documento do Banco Mundial traz uma constatação e um diagnóstico precisos a respeito dessa situação: "A desaceleração da economia chinesa e a queda nos preços das commodities representam novos desafios para uma região que não descuida de suas conquistas sociais. As manchetes da imprensa latino-americana falam cada vez mais do 'fim da festa', do 'fechamento de um ciclo de bonança', da 'desaceleração depois do auge' da região". Foi um longo período, definido como "superciclo", de valorização das commodities, comparável à industrialização americana no início do século 20 e ao pós-guerra, com a recuperação das economias europeia e japonesa. Tudo sustentado pela abertura do amplo mercado chinês. De 4% em 2011, o crescimento da América Latina caiu para 1% em 2014 e deve cair ainda mais em 2015.
- Há um movimento claro de mudanças na região, em maior ou menor grau dependendo do país. A onda rosa pôde ocorrer a partir das políticas de ajuste que domaram a inflação nos anos 1990. Governos de centro-esquerda chegaram e adotaram políticas que diminuíram a desigualdade social. Agora, o desafio não é apenas econômico, mas também político, de polarização na sociedade. O motivo pode ser o próprio esgotamento de um modelo ou simplesmente os efeitos da crise internacional - diz a cientista política Denilde Oliveira Holzhacker, professora na ESPM-SP.
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Em recente evento do Banco Mundial, Augusto de la Torre, economista-chefe da organização para a América Latina e o Caribe, fez a seguinte análise sobre a economia e a política regional:
- A região poderia ter feito muito mais reformas, mas isso não quer dizer que não tenha aproveitado o momento do boom.
Depois, completou:
- Em primeiro lugar, a região usou o período de 2003 a 2008 para melhorar seus modelos de política macroeconômica. A região como um todo está menos vulnerável a choques macroeconômicos e financeiros.
Denilde avalia que algumas conquistas dos últimos anos são perenes, independentemente de quem ocupe a cadeira presidencial:
- Os avanços sociais e a adoção de políticas compensatórias são vistos como importantes. A lógica de manutenção das conquistas sociais está no discurso de todos, acredito na sua perenização. São conquistas importantes. Pode até haver um esgotamento da presença forte do Estado como indutor do desenvolvimento, sem sacrifícios às políticas sociais.
Na avaliação de De la Torre, embora a região ainda dependa das commodities, seu modelo de exportações é diferente do que existia até os anos 1980. Os processos de produção agrícola e mineral se aprimoraram tecnologicamente e se conectaram mais com as economias locais. Sendo assim, beneficiam de forma concreta "os produtores e os demais cidadãos". Por aí, perenizam-se avanços.
Jogando para o futuro, o Banco Mundial identifica nas "reformas educativas" a possibilidade de tornar as conquistas ainda mais perenes, criar empregos de mais qualidade e contornar o retraimento chinês e a queda nos preços das commodities - ou seja, preservar a autonomia e a proteção contra crises. Seria uma forma de fortalecer o mercado interno e dar sustentabilidade à nova classe média. Isso, de acordo com De La Torre, conduziria os países "a melhorar o que for possível na infraestrutura". Outra convicção do economista é de que ajustes fiscais podem ser feitos sem comprometer avanços sociais.
- Está claro que a região passa por mudanças. Há o fim de um ciclo econômico e, agora, parece haver o fim de um cliclo político. Vejo governos mais matizados no futuro - diz o historiador argentino Carlos Malamud, uma das principais referências sobre América Latina na Europa. Malamud vive e leciona em Madri.
O cientista político Alfredo Valladão, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, vê nas eleições presidenciais argentinas, cujo segundo turno ocorre no próximo dia 22, "mais um prego no caixão do populismo dito de esquerda na América Latina" e "o fim de um ciclo histórico" - em muito, segundo ele, por causa de um modelo que, mediante commodities em alta, "distribui renda sem modernizar a economia e as relações sociais".
Os candidatos são o peronista conservador Daniel Scioli (governador da província de Buenos Aires e apoiado com reservas pela presidente Cristina Kirchner) e o opositor, defensor da economia liberal, Mauricio Macri (prefeito da cidade de Buenos Aires e rival de Cristina). As pesquisas mostram vantagem para Macri. O instituto González y Valladares indica o prefeito portenho com 52,35%, e Scioli com 47,65%. Para reverter a situação, Scioli conta com o apoio do marqueteiro brasileiro João Santana, próximo do PT e do chavismo.
A mudança
Cerca de 70 milhões de latino-americanos deixaram de ser pobres e 50 milhões se juntaram à classe média na última década. Nos anos 1990, 50% da população latino-americana era pobre e 20%, de classe média. Atualmente, os pobres somam 25%, enquanto os de classe média totalizam 34%.
Em cada país
Colômbia - Governo de Juan Manuel Santos, de centro-direita, mantém visão pragmática da economia e se aproxima de um histórico acordo de paz com a guerrilha.
Equador - Dificuldades econômicas com dependência do extrativismo e do petróleo, acrescentadas de um estilo autoritário do presidente Rafael Correa, levam a população a protestar nas ruas
Peru - Com Chile, Colômbia e México, o Peru fundou a Aliança do Pacífico, bloco comercial que costuma ser contraposto ao Mercosul por seu pragmatismo econômico.
Bolívia - O historiador argentino Carlos Malamud fala sobre o "grande paradoxo" do presidente Evo Morales: faz discurso de confrontação aos EUA, mas mantém condução ortodoxa da economia.
Paraguai - Depois do ex-bispo de esquerda Fernando Lugo, o Paraguai é presidido hoje pelo empresário Horacio Cartes, um homem de fortes convicções liberais na economia.
Chile - Presidente Michelle Bachelet voltou ao poder depois de deixá-lo com 80% de popularidade. Suspeitas de corrupção e dificuldades para implementar reformas reduziram popularidade para próximo de 20%
Venezuela - Pesquisas mostram que oposição tem vantagem para desbancar o chavismo do Legislativo unicameral. País está em profunda crise econômica.
Brasil - Vive uma grave crise política e econômica e teve de adotar políticas de ajuste fiscal, tipicamente ortodoxas, com a redução nos gastos públicos.
Uruguai - José Mujica foi sucedido por Tabaré Vázquez. Ambos são da esquerdista Frente Ampla, mas Tabaré é mais conservador nos costumes e na economia.
Argentina - Eleições chegam ao segundo turno disputadas por um peronista conservador, Daniel Scioli, e um defensor do liberalismo econômico, Mauricio Macri.