As irmãs Anelise, Chaiane, Thaís e a prima Franciele encontraram-se entre as casas da Aldeia dos Coqueiros, à margem da BR-386, em Estrela, no Vale do Taquari, por volta das 6h30min. Com tempo de sobra e ainda no escuro, caminharam cerca de 300 metros de chão batido até o acostamento da rodovia, onde embarcariam em um micro-ônibus da prefeitura que as deixaria na porta da escola, quatro quilômetros distante dali.
O coletivo só passaria às 6h50min, mas as meninas da tribo caingangue faziam questão de chegar antes para, à beira da estrada, tomar o café que traziam em uma térmica - um ritual diário interrompido na manhã de ontem.
Na pista contrária, sentido Capital-Interior, vinha uma caminhão descarregado. Um rodado do veículo se desprendeu, atravessou a faixa e as atingiu em cheio. Chaiane Soares Lemes, 15 anos, Thaís Soares Lemes, 11 anos, e Franciele dos Santos Lemes, 14 anos, morreram no local. Anelise Soares Lemes, 13 anos, foi levada para o Hospital Estrela e, segundo a instituição informou às 18h, ela permanecia em estado grave.
Motorista diz ter percebido que rodado se soltou ao parar para tomar café
O irmão de Franciele, Thiago, 13 anos, também aluno da Escola Pedro Braun, foi para a rodovia pouco depois. Em tempo suficiente para ser testemunha da pior tragédia já vivida pela tribo que mora há mais de cinco décadas de frente para a BR.
- Estava passando pelo portão (a cerca de 20 metros da parada de ônibus). Vi o pneu voando e, depois, as gurias atiradas no chão. Fui correndo chamar meu tio. Ele desceu e gritou o nome delas, mas nenhuma respondeu - conta.
Infográfico: como ocorreu o acidente que matou três meninas
Não demorou muito para que toda a comunidade indígena descesse para a rodovia. Cerca de 150 pessoas - das quais, 50 crianças. Um caminhão, que chegou ao local pouco depois do acidente, estava parado na pista e foi depredado por parte dos índios. Quando o clima ficou menos tenso no local, índios pediram desculpas ao caminhoneiro, que teve seu veículo guinchado.
Da avó de 90 anos a bebês de colo, acompanharam juntos a retirada dos corpos e bloquearam os dois sentidos da BR-386. Por seis horas, a comunidade silenciou a rodovia que já lhe tomou seis filhos - entre eles, o patriarca Manoel Soares, que em 1960, ali se instalou com as três mulheres, dando início a toda a família. No último acidente, no ano passado, Maria Eduarda, dois anos, foi atingida pela roda de um carro enquanto aguardava o ônibus com a mãe. Morreu em frente ao local do acidente de ontem, só que do outro lado da estrada.
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Enquanto crianças escreviam os nomes das vítimas no asfalto, pedindo justiça, adultos preparavam o centro cultural da aldeia para receber e velar os três corpos, que seriam enterrados no cemitério da tribo. Filhas da comunidade que vive da venda de artesanato em cidades como Estrela, Lajeado e Montenegro, Chaiane e Franciele queriam ser professoras. Thaís desejava se tornar advogada e, Analise, médica.
- O sonho das gurias, e o nosso também, foi embora - lamenta Adécio Soares dos Santos, 28 anos, primo das vítimas.
Cacique diz ter pedido que ônibus buscasse alunos dentro da aldeia
O acidente causou revolta entre os indígenas da aldeia, da tribo caingangue. O cacique Carlos Soares disse que havia solicitado que o ônibus escolar buscasse os estudantes dentro da aldeia, a cerca de 300 metros da rodovia, para que não tivessem de caminhar pelo acostamento.
A prefeitura de Estrela informou, por meio de nota (confira a íntegra abaixo), que não há pedidos de que o transporte entrasse na aldeia na prefeitura e na 3ª Coordenadoria Regional de Educação. A administração munincipal ainda disse que o ônibus escolar obecede um roteiro estabelecido há mais de 10 anos e que é de responsabilidade dos pais acompanhar e embarcar os filhos com segurança.
O caminhão que teve o rodado desprendido não permaneceu no local do acidente. Um motorista suspeito de dirigir o veículo foi preso em flagrante na BR-386, em Tio Hugo, cerca de três horas após o ocorrido. Ele disse não ter percebido que o rodado havia se soltado do veículo.
Confira a nota divulgada pela prefeitura de Estrela sobre o transporte escolar:
"O governo de Estrela consterna-se com o trágico acidente ocorrido na BR-386 e se solidariza com as famílias das vítimas. Em relação ao transporte das crianças, o mesmo segue o padrão de todo o transporte escolar feito no município, onde o ônibus da Secretaria de Educação obedece um roteiro estabelecido há mais de 10 anos, passando pelas principais vias e recolhendo seus pequenos passageiros nas paradas de ônibus existentes. É responsabilidade dos pais acompanhar e embarcar seus filhos com segurança no transporte, ficando sob a tutela do município do embarque à ida para escola até sua volta e desembarque. Em relação a pedido para que o transporte entrasse na aldeia, não encontram-se nem na Prefeitura de Estrela e nem na 3ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE) nada a esse respeito. Mais uma vez, o governo de Estrela ressalta a importância da completa duplicação da BR-386 que tantas pessoas já vitimou".
* Zero Hora