Neste momento em que o drama humanitário de pessoas desesperançadas comove o mundo e impõe um dilema à Europa, há campos de refugiados que já chegam a 150 mil habitantes. São algo como cidades que têm comércio, hospitais, escolas e até ruas com denominação própria. Tudo é transitório, mas vai se consolidando com jeito de permanente, em um paradoxo cujo maior símbolo é o de crianças que nascem e crescem em lugares assim.
O brasileiro Ricardo Vargas, especialista em gerenciamento de projetos, é um dos responsáveis das Nações Unidas por criar as condições para que esses campos de refugiados recebam infraestrutura e gestão adequadas.
- Fazemos a ponte entre a ideia e o resultado real - diz Vargas.
Ao comentar a foto do menino sírio Aylan Kurdi, morto às margens do Mar Egeu, na Turquia, no dia 2 de setembro, Vargas faz uma ponderação e um pedido. A ponderação: a tragédia dos refugiados não aumentou. Apenas se tornou mais visível. O pedido: que se tenha "compaixão".
São 8 mil pessoas envolvidas na administração de centenas de campos. O brasileiro as coordena. As obras são arrojadas. Dois meses atrás, foi colocado um sistema de iluminação com painéis em 34 campos no Curdistão, na área curda do Iraque.
- Foi um projeto maravilhoso. São painéis que captam a luz do sol e carregam uma lâmpada como se fosse uma tocha. Isso devolveu vida àquele campo. Aumentou extremamente a segurança de crianças e mulheres - conta Vargas.
E há o dilema: esses profissionais sabem que suas funções existem apenas em razão dos conflitos. Preferiam que não existissem.
ENTREVISTA
"Aylan foi a face visível de um problema terrível", diz engenheiro da ONU
O engenheiro químico Ricardo Vargas, 43 anos, é especialista em gerenciamento de projetos. Uma de suas missões como integrante do Escritório das Nações Unidas para Serviços de Projetos (Unops) é possibilitar que os campos de refugiados tenham a estrutura adequada para receber os migrantes que se veem obrigados a deixar seus países de origem. Autor de 11 livros, o mineiro com domicílio em Copenhague, na Dinamarca, esteve em Porto Alegre para participar do 12º Seminário de Gerenciamento de Projetos, promovido pelo Project Management Institute (PMI). A seguir, a entrevista que ele concedeu a Zero Hora:
Como manter os refugiados em condições mínimas de vida, que inclusive impeçam a saída arriscada para outros países?
A estrutura do campo é humanitária. Ou seja, você tem o refúgio. E a maior parte das pessoas tem dificuldade de entender: os refugiados estão extremamente fragilizados, estão fugindo da guerra, da morte. Não estamos falando num processo migratório normal. Estamos falando num processo de conflito. A estrutura dos campos serve para tentar, de um ponto de vista provisório, dar algum tipo de suporte para essas pessoas. Você cria o campo não só para dar uma habitação, mas para dar uma condição digna de vida.
Que condições dignas de vida seriam essas?
Os campos para os quais a gente dá suporte têm até escolas, porque uma das nossas metas é tentar traduzir a normalidade. Estamos falando em pequenas ou até grandes cidades. Muitas vezes, são locais de difícil acesso, de logística complexa. O Escritório de Serviços de Projetos da ONU viabiliza toda essa parte de aquisição logística, de infraestrutura e de gestão. Uma coisa é você ter o caso do vírus ebola e o governo brasileiro falar que vai doar contêineres com roupas protetivas. Na maioria das vezes, esse material vai chegar num porto, em algum lugar. Quem é que vai transformar isso que chegou no porto em uma veste protetiva no interior de Serra Leoa? Muitas vezes, nem estrada você tem. Fazemos a ponte entre a ideia e o resultado real. Temos pessoal especializado em engenharia e gestão para fazer as coisas acontecerem.
O que tem nesses campos?
Depende do tamanho. O campo de Zaatari, na Jordânia, é o que atende a maior parte dos refugiados provenientes da Síria. São algo como 150 mil pessoas, é uma cidade, com escolas, força policial, posto de saúde, padaria comunitária, supermercado comunitário, área de convívio, área esportiva.
Há casos de refugiados que conseguem exercer sua profissão nesses campos?
Dentro da governança do campo, o primeiro objetivo é o de garantir os mecanismos básicos de sobrevivência. Essas pessoas não chegam em situação normal. São pessoas que caminharam por dias, estão famintas. A primeira coisa a ser feita é assegurar se estão com a saúde correta. Depois, é o atendimento psicológico. Ainda depois, a reintegração e o estabelecimento de uma mínima normalidade para essas pessoas. Esse é o objetivo, o que inclui ver a habilidade que o refugiado tem que lhe permita contribuir de alguma forma. Poxa, você padeiro? Pô, você pode fazer pão para sua comunidade. Nós doamos a farinha, e você começa. Lógico que temos campos muito básicos e outros maiores. Pensa-se que os campos são só barracas. Não são. É comida, energia elétrica.
Quem são os "prefeitos" dessas "cidades"?
Todo campo tem um prefeito do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur). Há um líder, que é o gestor do campo. Tecnicamente, poderíamos chamar de prefeito. Na maioria das vezes, as melhorias num campo são feitas a pedido dessa pessoa.
E se tem crime dentro do campo? Tem polícia?
Tem polícia, sim. O Judiciário também, dentro do sistema jurídico do país onde está o campo. Já construímos detenções dentro dos campos de refugiados. Não administramos, mas construímos as instalações.
Foto de menino afogado na Turquia gera comoção na Europa
Garoto sírio se torna o rosto do drama dos refugiados
Faz três anos que o senhor está trabalhando nisso. O maior desafio é o de agora, com essa onda de refugiados que chegam à Europa?
O momento é crítico, mas o que ocorre de diferente é que ele está muito visível na mídia. Mas há muitos desafios ocorrendo em muitas partes do mundo, que infelizmente não estão tendo o mesmo registro. Na verdade, está acontecendo muito. A morte do menino sírio Aylan Kurdi na Turquia foi muito visível, muito próxima, virou uma mensagem. É uma imagem muito impactante.
O menino se tornou mártir?
Sim. Mas, infelizmente, existem desafios assim em inúmeras partes do mundo, todos os dias, e que não estão saindo na TV. Aylan foi um símbolo, foi a face visível de um problema terrível.
David Coimbra: o menino sírio
Luiz Antônio Araujo: Ver, registrar e lembrar
De todos os conflitos decorrentes da Primavera Árabe, a guerra na Síria é o que aindanão terminou. Os sírios aceitam ficar tanto tempo em campos de refugiados?
O que tem ocorrido é que quanto mais rápido se resolve a crise, mais sólido é o restabelecimento. Com guerras que duram tanto tempo, os campos de refugiados viram cidades. As pessoas se estabelecem, casam-se, têm vida, têm filhos. Criam vínculo. E o campo é conceito temporário. E em alguns casos o temporário vira permanente. Tem campo, como o de Zaatari, que é de 2011.
Os países europeus, em especial os governos de direita, alegam que, entre os refugiados, pode haver terrorista infiltrado. Como se faz esse controle?
Isso é com cada país, com seus serviços de inteligência. A ONU tem trabalho humanitário. O que podemos dizer é que esses refugiados que estão se deslocando não são oportunistas. Estamos falando na maioria esmagadora. Pessoas que perderam tudo, que tiveram de fugir para sobreviver. É preciso ter compaixão.
Se esse temor tiver fundamento, seria minoria ínfima?
É claro que existe um desequilíbrio natural quando há esse influxo de pessoas, isso ocorre em qualquer lugar. Se da noite para o dia aparecem 200 mil pessoas em Porto Alegre, é claro que se cria um desequilíbrio na sociedade. Mas, ao mesmo tempo, se você não receber esse influxo, você está condenando à morte essas 200 mil pessoas. É um dilema. E nós temos a função de dar um mínimo de dignidade a essas pessoas até que as decisões sejam tomadas e essas pessoas possam se restabelecer em uma vida normal. É tudo o que a gente quer. A gente só existe porque existem esses conflitos. O ideal seria não precisarmos existir.
Qual, fundamentalmente, a sua função?
Todo o trabalho de construção da paz é muito difícil, e o meu, especificamente, é ter uma engenharia e um processo adequados para gerar o maior resultado possível com a menor despesa possível. É criar as condições para que as coisas aconteçam.
E essas condições existem?
Tenho muita alegria de dizer que temos uma equipe brilhante, nos aspectos técnico e humano. Quando você desloca um gestor, um engenheiro, para um país com pouca estrutura, em conflito ou com doenças, não é só a técnica que você precisa. Você precisa ter uma pessoa com vocação e motivação para aquele tipo de trabalho. Não é um trabalho normal. São pessoas que vivem em situações extremas. Os desafios são infinitos.
EUA receberão 85 mil refugiados em 2016 e 100 mil em 2017
Quando uma criança nasce no campo, a nacionalidade dela é a do país onde está o campo?
Depende de onde o campo está situado e qual o acordo que existe dentro daquele campo. Há várias discussões. Muitas vezes, as pessoas não estão mudando de país. São o que chamamos de deslocados.
Se o senhor estivesse como refugiado há três anos, continuaria no campo ou iria para a Europa?
Todas essas situações são terríveis. Não consigo me colocar no lugar para saber o que é melhor. Vai muito da história e da cabeça dessas pessoas. Muitos querem voltar para a vida que tinham. Num mesmo campo, cada um pode ter uma decisão diferente. Acho que tem o componente da demora. As pessoas têm condições de ficar nos campos, mas eles existem para ser transitórios, e muitos têm prazo para as pessoas ficarem.
A estrutura não é de cidade?
Sim, porque precisamos normalizar ao máximo a vida dessas pessoas. As escolas, por exemplo, são incríveis. Podem ser escolas excelentes. Há todo um ecossistema de apoio. Mas o fundamento é a transitoriedade. E as soluções são integradas e multidisciplinares. Colocam-se luzes, ambulatórios e outros elementos de uma infraestrutura que dê condições para as pessoas viverem.
Há um paradoxo, de algo que tem estrutura permanente para ser transitório.
Sim, mas esses campos também podem ser levantados rapidamente. Temos a grande questão: qual é a solução para essas pessoas. Criamos estruturas temporárias para elas viverem com dignidade em uma situação emergencial.
A história de quatro refugiados sírios que escolheram viver no RS
Não é desconfortável, mesmo com toda a estrutura, o refugiado saber que os campos são transitórios?
Claro. Todos querem voltar para suas vidas. Imagine que sua casa foi destruída, você perdeu gente que ama, teve de sair correndo, deixando seu carro, sua roupa, sua mala. Aí, vai para uma cidade a 300 quilômetros de Porto Alegre. No caminho, você tem um ente querido que é morto ou adoeceu. Alguém oferece um abrigo transitório, oferece a melhor condição possível. Mas como é que você está? Pô, eu tinha a minha vida.
O conceito de refugiado foi criado em 1951. Antes disso, eram todos imigrantes. Qual a diferença?
Hoje, o conceito de imigrante é o de quem decide mudar de país em busca de uma situação melhor. Isso não é refugiado. Refúgio é quando existe uma perseguição, uma ameaça que impeça você de ficar na atual condição e que alguém precisa lhe dar abrigo, dar um refúgio para você. O refugiado é aquele que não pode ficar no lugar onde vive. Ninguém quer ficar em um campo de refugiados, ninguém entra em um campo de refugiados para construir uma nova vida.
Esse seu trabalho lhe dá que tipo de sentimento?
Me dá gratificação, mas também certa depressão. Preferia não precisar fazer o que faço.