Com a mania que tem de ouvir, de querer saber mais do que está registrado nos "autos do processo", o juiz Sidinei José Brzuska, 47 anos, percorre com desenvoltura os meandros do sistema penitenciário. Conhece os principais líderes das cadeias, os presos comuns, familiares e funcionários. É por meio desses contatos que tira informações para embasar suas decisões.
Natural de Três de Maio, Brzuska é casado e tem três filhos. Há 18 anos trabalhando com execução de penas, acredita na recuperação de criminosos apostando no que a pessoa tem de bom. Avalia que são poucos os que não têm futuro longe do crime. Atualmente, trata dos processos de 4,5 mil detentos, do Presídio Central e da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas. De 2008 a 2012, quando atuou na fiscalização de presídios - eram 26 cadeias -, tinha um total de 14 mil detentos sob sua tutela.
Durante três horas, conversou com Zero Hora em seu gabinete, no Fórum Central da Capital.
Como a ideia de ser juiz surgiu na cabeça do jovem borracheiro e lavador de carros de Três de Maio?
Queria ser motorista de caminhão. Meu pai era lavador de carros. Minha mãe era do lar. Meu pai conseguiu uma bolsa de estudos, eu era cotista num colégio particular. Uma coisa interessante é que quando tinha a revista do piolho e do cascão, só faziam nos cotistas. O fato de eu ser juiz tem a ver com uma coisa, que é eu nunca me conformar com respostas que não entendesse. Tinha dificuldade de entender contas matemáticas. Quando meus colegas não sabiam fazer as contas, a professora sentava ao lado e explicava. Quando chegava na minha vez, ela me mandava para o quadro. Tinha de mostrar que não sabia para todo mundo. Isso me criou um bloqueio na matemática. Me tornei juiz porque não gosto de matemática.
Simples assim?
Dessa experiência de ir para o quadro eu senti a discriminação do cotista, levei aquele bloqueio da matemática. No 2º grau, escolhi um curso técnico (administração de empresas) que tivesse menos matemática, e nesse curso tinha noções de Direito. Perguntei ao professor, um advogado, se a matemática no Direito era muito puxada. Ele disse que não tinha matemática. Então é isso aí, pensei. Me tornei juiz porque fui para o quadro no primário sem saber fazer conta, porque eu era cotista e não me ensinaram.
Escolheu o Direito pensando em ser juiz?
Não tinha a menor ideia do que fazia um juiz ou um advogado. Eu lavava carros, era o borracheiro. O mais perto de um fórum que eu tinha chegado era quando eu lavava o carro do escrivão do fórum de Três de Maio, que é pai do Douglas Fischer (hoje procurador da República). Ele tinha uma Belina e um Del Rey.
"Não existe controle no Central", afirma juiz sobre tráfico de drogas no interior de penitenciária
Quando começou a trabalhar como borracheiro e lavador?
Quando estava na 6ª série. Sem bolsa, voltei para escola pública. Comecei a trabalhar na lavagem do meu pai. Meu salário era o seguinte: dos pneus de carro que eu consertava o dinheiro ficava comigo. Quando não tinha pneu, tinha que fazer o resto e não ganhava nada. Meu negócio era torcer para que os pneus dos carros furassem.
O senhor furava pneus?
Meu avô era carpinteiro e tinha uma caixa velha, cheia de pregos e tachas. Confesso que larguei algumas pela rua, no caminho do trabalho, para tentar aumentar meus ganhos. Eu tinha 12, 13 anos. Depois, me colocaram como lavador de carros, com carteira assinada. Quando saí, fui ser frentista. Tinha um tio que tinha sido brigadiano aqui em Porto Alegre, ele me incentivava para fazer concurso. Eu só queria ser motorista de caminhão. Aprendi a dirigir carreta com 14 anos. Buscava a carreta, lavava e devolvia. Com esse dinheiro comprei minhas motos. Tive três motos antes dos 18 anos.
O Presídio Central pelas lentes do juiz Sidinei Brzuska
Dirigia sem ter carteira? Nunca foi preso?
Tinha 16 anos e não tinha carteira. Logo, sempre me desviava da polícia. Uma vez não deu. Tive de fugir, porque senão perderia o fruto do meu trabalho. Minha história de vida pode ser exemplo diante do debate nacional (sobre a redução da maioridade penal), pois a pessoa nessa fase de 15, 16, 17 anos não está madura. É normal que pratique deslizes e isso não quer dizer que vai se tornar um delinquente. É o momento das correções. Imagina se eu tivesse ido para um presídio?!
O senhor usava drogas?
Nunca usei, mas meus amigos usaram e morreram. E eu, como juiz, executei pena de amigos de infância.
Como foi a mudança para Porto Alegre?
Meu tio ficava insistindo. Abriu concurso na Justiça Federal em 1986. Eu tinha 18 anos. Fiz 18 numa terça-feira e, na quinta-feira, tirei minha carteira de motorista. Fui aprovado (para agente de segurança) no concurso, mas não tinha vaga. Segui sendo frentista. Em 1987, vim morar com meu tio. Peguei minha moto, uma mochila e vim. Fui morar na Vila Cefer II. Eu e meus dois primos revezávamos as camas. Tinha duas. A cada semana, um dormia no chão. Fui office-boy, trabalhei em imobiliária. Conheci o mar com 19 anos, trabalhando na filial da imobiliária em Capão. O dono da imobiliária tinha um filho parecido comigo, nos chamamos de irmãos até hoje. Como a passagem de ônibus era muito cara, ele fazia a carteirinha de estudante e eu usava. Tinha de pegar quatro ônibus por dia e correr os acessos da Cefer, por causa da guerra que havia com a Vila Ipê.
Juiz que chorou em seminário no Presídio Central explica reação emocional
Já tinha guerra naquela época?
Era uma guerra terrível só pelo fato de morar de um lado ou do outro. Eu tinha uma pistola calibre 380. Nunca precisei usar. Quando virei juiz, me desfiz.
Sua família passava dificuldades?
Quando era boy em Porto Alegre, meu pai tinha falido, minha mãe era faxineira, tinha as mãos comidas de Q Boa (água sanitária), e eu ajudava em casa. Comecei a virar o jogo quando o dono da imobiliária (Natan Press) viu que eu tinha potencial. Eu estava mal. O Natan me deixou trabalhar como corretor em Capão. Me antecipou uma verba por semana para eu conhecer os imóveis antes de começar a temporada. Ele me deu uma máquina para fotografar os imóveis. Na imobiliária, éramos 14 corretores. Ao término da temporada, a metade das locações foi eu quem fiz. Assim ganhei meu primeiro dinheiro. Fiz duas coisas: arrematei a casa da mãe que tinha ido a leilão e paguei um curso pré-vestibular.
Justiça pode barrar entrada de detentos no Presídio Central
E o concurso, o senhor chegou a ser chamado?
Em abril de 1989, com 20 anos, tomei posse como agente de segurança da Justiça Federal. Vinha de um ritmo louco de trabalho, e na Justiça começavam a trabalhar às 11h. Ia cedo para lá. Me deram todos os serviços que ninguém queria fazer, organizar fichário, arrumar depósitos. Fiz e queria mais. Tudo que era de ruim eu já tinha feito. Só restaram os processos. Me deram. Tinha de cuidar, juntar petição, fazer despachos. Já estava cursando Direito na PUC, com crédito educativo.
O senhor sabia o que fazer nos processos?
Sabia nada. Pegava um processo antigo e olhava o que tinham feito e fazia igual. Por comparação, fui aprendendo como os processos andavam, como eram os despachos. Um dia, li uma decisão e disse: "Olha só, então ser juiz é isso". Ali eu entendi. E fui ver o que precisava fazer para ser juiz: só concurso. Bastava estudar e estava ao meu alcance. Fiz a conta: tinha 20 anos e, na faculdade, levaria cinco para me formar e mais cinco para me preparar. Com 30 seria juiz. Com 29 anos assumi.
Tornozeleira em galo reforça crítica ao controle do sistema pela Susepe
O que o senhor traz de sua experiência de vida para as decisões?
Uma coisa que trago é que você tem de olhar o filme da pessoa, reconstituir a vida dela para poder julgá-la. Tem de entender como a pessoa chegou naquele momento para fazer aquele ato (o crime). Não pode julgar a partir do fato simplesmente. Nem sempre se consegue fazer isso. O processo não trata com verdades ou vê uma verdade parcial. Outra coisa é que o sujeito que teve a experiência de sofrimento, de ser discriminado, que foi cotista e que não é recalcado por isso - e eu não sou - , talvez tenha ampliada essa capacidade de ouvir. Ver o filme é a capacidade de ouvir. E isso, na execução da pena, me dá uma facilidade de entender melhor as pessoas.
Com "olho no olho" é mais fácil acertar na decisão? Em tribunais superiores, a sentença é baseada em papéis. A chance de errar é maior?
É maior. Quando se conversa, vê reações, vê as lágrimas, vê se a pessoa está dizendo a verdade. Juiz tem que ter a chance de errar pelo que viu e não pelo que os outros lhe contaram. Basta se colocar na posição de quem vai ser julgado: você quer ser julgado por quem te ouviu falar ou por um papel?
É comum os presos dizerem que são inocentes.
Numa conversa frente a frente, a alegação de inocência se esfacela. Pergunto: por que tu estás preso? 157. Você não entendeu. Por que tu estás preso? Roubei um carro. Você não entendeu ainda. Quero saber por que tu estás preso? Ele vai ter que recontar a história dele. Assim, tu começas a trabalhar com mais verdades e menos papel. Tirar alguém da cadeia é fácil, tirar do crime é muito difícil.
Que circunstâncias mais contribuem para a pessoa se tornar criminosa? Pobreza? Abusos? Falta de mãe e pai? Uso de drogas? Genética?
Tem um percentual que reproduz o que sofreu, nos casos de crimes sexuais. A desestrutura familiar, o ambiente de pobreza, a falta de referências, de valores, isso contribui bastante. Mães que não estão preparadas para serem mães, pais ausentes. Minha tia, que considero minha segunda mãe, sempre disse que educação se dá na dentição de leite. Aqui estamos falhando muito. Quando se castiga um filho, dói, mas por trás tem um carinho, um cuidado. Se castigares só por castigar, vai criar monstrinhos, revoltados contra ti e tu vai perdê-los. É mais ou menos o que acontece na execução das penas. Se tu só castigares sem agregar valores, esse sujeito voltará a te desobedecer, vai virar "monstrinho". Tem de fazer ele entender por que está sendo castigado.
De zero a 10, quanto o sistema penitenciário tem o poder de recuperar?
Um.
Qual alternativa então?
Tem de recuperar o filme da pessoa para buscar o que ela tem de bom e trabalhar isso.
Como convencer a população de que o criminoso precisa ter tratamento digno?
Isso levará gerações. Vamos levar muito tempo para entender que se não castigarmos com valores, nós vamos fazer cada vez mais uma sociedade de ódio, de exclusão, e vamos aumentar esse fosso de violência.
O que pensa da redução da maioridade penal?
Sou contra porque um jovem nessa fase não está desenvolvido. A lei brasileira, no aspecto civil, não considera esse jovem uma pessoa capaz. Não outorgamos para ele carteira de motorista, não permitimos que case, que administre herança, que venda imóvel. Por quê? Porque não o consideramos responsável. Não consideramos nossos filhos de 16, 17 anos adultos. Não os deixamos na rua sozinhos à noite, levamos e buscamos nas festas de madrugada.
Esse jovem sabe o que é certo ou errado?
Não é que esse jovem não saiba o que é certo ou errado. Mas ele precisa ser melhor protegido e orientado. E não é jogando ele na prisão que nós vamos fazer isso. Essa situação só se justifica do ponto de vista do direito penal do inimigo. Você quer que o filho do outro vá para a cadeia. Não quer que teu filho vá. Estamos fazendo debate ilógico com posições de ódio, como se fosse o bem contra o mal, onde todos se consideram na posição do bem e quem não tem minha posição está no mal. Temos de fazer uma conciliação nacional. A redução da maioridade penal é o remédio que vai matar o paciente.
É mais fácil ser o lado que opina, que diz o que o outro tem de fazer sem precisar enfrentar as dificuldades financeiras como as do Executivo, por exemplo?
É muito mais fácil ser pedra do que vidraça. Eu também sou vidraça, e bastante, na medida em que sou a pessoa que pratica o ato que a sociedade não gosta, que é o de soltar alguém que cometeu crime.
Como é seu dia a dia fora das cadeias, do trabalho? O que faz?
Levo tempo para me desconectar do trabalho. Não consigo desligar na sexta e só voltar na segunda. Normalmente, estou conectado. Em férias, só me desconecto depois do 15º dia de férias. Final de semana, o que tento fazer é foto, gosto de fotografia, gosto de andar de bicicleta, gosto de não ser reconhecido, de ser só mais um.
Suas fotos retratando o interior de presídios são famosas. De onde vem o gosto pela fotografia?
Foi ao natural. Não tenho talentos, não pinto, não toco instrumento. Sobrou a fotografia. Fiz um curso básico. Gosto muito do Sebastião Salgado. Acho que a fotografia tem essa capacidade de mostrar e congelar as coisas. E este ano quase voltei para a faculdade, quero fazer História. E ando de bicicleta porque não gosto de academia, de puxar ferro.
Qual tipo de leitura prefere?
Gosto muito de História. Nas últimas férias, li três livros de História do Brasil. Agora, estou com vontade de ler sobre tribos indígenas que compunham o país.
O senhor se sente seguro?
Não me sinto inseguro. A minha família eu não a exponho. É uma forma de proteção.
Já sofreu ameaças? Precisou ter segurança?
Nunca.
Este ano, desde a morte do traficante Xandi, a população viu uma escalada de episódios de violência. Xandi ganhou homenagem, um rival dele foi morto na Pasc e houve execuções à luz do dia. O crime está mais ousado?
A criminalidade está mais aguda. A ostensividade que você tinha antes do aparato policial, essa que você não vê mais, está cedendo espaço para a ostensividade do crime. Isso é um passo à frente do que se vê dentro das prisões. Há tempo que o Estado vem entregando espaços dentro das prisões e eles são ocupados pelas facções. O Estado recua e o crime avança. Para recuperar isso talvez tenha de voltar à origem, retomar os espaços dentro das prisões.
É possível retomar esses espaços?
Em uma prisão nova, sim, não se deve deixar as facções se criarem. Numa prisão velha é difícil.
Qual é o pior tipo de criminoso?
Existem algumas pessoas - poucas - que te dão sensação de desesperança. Não quero dar nomes, mas tem uns que, em uma conversa, só se vê crime no sujeito, não se acha algo bom para desenvolver. Esse é alguém ruim de lidar, é o pior preso. Não se consegue achar algo bom para traçar um plano. Alguns somente adquirem essa conscientização em uma fase mais adiantada da vida, depois dos 50, 60 anos.
O senhor acompanha o sistema prisional de Porto Alegre desde 2008. Sucessivos governos fizeram promessas. Houve melhora?
Não houve. E nós não trabalhamos com dados objetivos para aferir melhora. Qual dado temos? Palpável? Onde teve melhora? Naquilo que se fez acordo com preso, como não matar dentro da cadeia, por exemplo. Então, diminuíram homicídios dentro da prisão. Só teve melhora naquilo em que se fez acordo com os presos. Esses dias um preso disse: "Um preso empregado é um revólver a menos na rua". Esse é um dado objetivo. Quando falo em preso empregado, não é bico, é o cidadão empregado com carteira assinada, com vale-refeição, previdência social, com plano de saúde para a família. Quantos o Estado empregou este ano, ano passado? Zero. Montar disjuntor de luz dentro da cadeia não é emprego, pois quando sai da prisão, está demitido.
O senhor atua há 18 anos na execução de penas. Nesse período, o que decepcionou o senhor?
Tive um choque quando entrei pela primeira vez no fundão do Central. Foi um impacto.
É a favor da manutenção do Presídio Central?
Sou a favor de que se mantenha, mas sou contra a que o Central siga operando nas condições e forma em que está. Nem tudo é ruim no Central. Tem pavilhões em condições razoáveis, tem ambulatórios, gabinetes odontológicos, salas de aula, é patrimônio púbico que deve ser mantido. O que não deve continuar são as galerias dominadas por facções.
Como financiar a melhora no sistema prisional?
Defendo que se crie fundo para reaparelhamento do sistema penitenciário, e que as verbas sejam alocadas no Poder Judiciário. O fundo seria constituído pelo aumento de 1% ou 2% das custas judiciais. Cria-se uma lei para instituir esse fundo e aumenta-se o valor das custas - portanto, o Judiciário não teria prejuízo. Essas verbas devem ficar no Poder Judiciário, ou seja, não vai para a vala comum do orçamento, e cria-se um conselho gestor composto por pessoas de Judiciário, Ministério Público, OAB, Poder Executivo. O conselho libera as verbas de acordo com os projetos. Dois motivos para ficar no Judiciário: não ir para vala comum e porque existem questões técnicas sobre onde construir presídios que o Poder Executivo tem dificuldade de lidar por conta de questões políticas. Como Judiciário não tem o problema de enfrentar as urnas, pode ter critério mais técnico para essas definições.
Às vezes, dá a impressão que o juiz quer ser o joãozinho do passo certo. Por quê?
O juiz é mais um. E erra tanto quanto qualquer um. Espera-se que erre menos. Não se admite que seja desonesto, desleal, que dolosamente erre. Isso não se pode admitir. Mas isso não quer dizer que o juiz enquanto humano não erre.
Leia outros Com a Palavra
O senhor tem um caso emblemático em que foi contra a Defensoria Pública e o Ministério Público em um caso de aborto no Interior. O senhor estava certo?
Estava substituindo na Vara da Infância e chegou pedido de aborto porque havia risco de cegueira para a mãe. Era um bebê sadio. Não tinha recursos de internet para buscar informações rápidas, fui atrás de literatura, de médicos, falei com minha vó, minha mãe. Neguei o aborto e acompanho o caso até hoje. A mãe perdeu a visão durante a gestação, mas recuperou depois do nascimento. Tenho a decisão guardada até hoje, tenho a certidão de nascimento dela dentro de uma Bíblia. Ela não sabe que não teria nascido se não fosse a minha decisão. Possivelmente, jamais saberá disso.