Foto: Diego Vara/Agência RBS
Em uma sala na Secretaria do Ambiente (Sema) do Estado, três móveis com prateleiras abarrotadas de caixas e pilhas de processos são o símbolo do descaso que resultou em uma década de trabalho desperdiçada, além de impunidade e renúncia de receita em um Estado que hoje alega dificuldades até para pagar em dia o salário do funcionalismo.
São 2.451 multas por queimadas, cortes de vegetação nativa ou danos em áreas de preservação, aplicadas entre 2000 e 2009, que acabaram prescrevendo porque não foram avaliadas a tempo pela Junta Superior de Julgamento de Recursos (JSJR), que analisa em segunda instância as infrações florestais administrativas. Um dos motivos é que a JSJR ficou inoperante por quase três anos, até maio de 2012, em razão da falta de nomeação pelo governo de membros julgadores.
O valor que deixou de ser arrecadado pelo Estado devido à prescrição - que pode ocorrer no prazo de três anos, se o processo ficar paralisado, ou em até cinco anos, após o fim de todos os trâmites - seria de pelo menos R$ 13,1 milhões. O cálculo foi feito pelo Tribunal de Contas (TCE), que instaurou, em 2011, uma inspeção extraordinária na Secretaria do Meio Ambiente - hoje Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável - para examinar "as deficiências no sistema de apuração e julgamento das infrações florestais". Na época, os auditores se debruçaram em 1.238 processos - pouco mais da metade das multas que caducaram.
A Sema só conseguiu contabilizar e organizar o estoque prescrito nos últimos meses, mas não apurou quanto, de fato, deixou de arrecadar. Considerando o valor médio das penas, o total poderia chegar a R$ 26 milhões, verba suficiente para construir 17 creches com capacidade para atender a 4 mil crianças.
O relatório do TCE, que também apontou a falta de um setor de fiscalização na secretaria, ainda não foi julgado. Em março, com base nessa inspeção do tribunal, o Ministério Público ajuizou ação civil pública em que pede o ressarcimento aos cofres públicos e a condenação por improbidade administrativa dos três ex-secretários estaduais que ocuparam os cargos no período em que a JSJR esteve desativada: Giancarlo Tusi Pinto, Berfran Rosado e Jussara Cony.
Advogados de Giancarlo e Berfran, Renato Walter e Rafael Massini argumentam que a prescrição de multas tem diversos entendimentos. Já Jussara afirma que nenhum processo caducou no período em que esteve no comando da pasta. A ação tramita na 2ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central de Porto Alegre.
De acordo com a atual secretária-adjunta do Ambiente, Maria Patrícia Möllmann, a pasta fará uma análise individual dos 2,4 mil processos arquivados para ver se existe alguma forma de recuperar o dano ambiental. Uma das possibilidades seria aproveitar o Cadastro Ambiental Rural (CAR), já que a maioria dos infratores é de produtores rurais.
Funcionários correm para evitar que 1,2 mil processos prescrevam
Desde o início do ano, servidores da Secretaria do Ambiente (Sema) correm contra o tempo para evitar que mais multas prescrevam. Zero Hora obteve dados por meio da Lei de Acesso à Informação que revelam que quase 1,2 mil processos aguardam julgamento em primeira e segunda instância desde 2011. O valor referente às infrações florestais pendentes de análise nas juntas de Julgamento de Infrações Florestais (JJIF) e Superior de Julgamento de Recurso (JSJR) alcança R$ 17 milhões.
Uma força-tarefa foi criada na Sema, há quase um mês, para agilizar as sentenças e reduzir o passivo da primeira instância, a JJIF. Em agosto, o alvo será JSJR. Além disso, um grupo de trabalho está elaborando instrução normativa voltada para a fiscalização.
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A meta é diminuir para um ano o prazo de tramitação dos processos - hoje esse período chega a quase cinco anos.
- É uma situação horrível o fato de se ter multas aplicadas e que o órgão ambiental não deu conta do posterior, tanto a cobrança do recurso como a recuperação do dano ambiental. O que está em jogo é até uma questão do respeito da própria instituição. É isso que se busca reverter - afirma a secretária-adjunta do Ambiente, Maria Patrícia Möllmann.
Na Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), não há notícias sobre prescrição de multas. O órgão vinculado à Sema é responsável por aplicar sanções por condutas e atividades lesivas ao ambiente como poluição e contaminação de rios e solo. Pendentes de julgamento na Fepam desde 2011, estão 3.128 processos, que somam R$ 2,87 milhões. Na fundação, a decisão de primeira instância fica a cargo do diretor técnico, enquanto que o recurso depende de análise do presidente.
Entre 2011 e 2015, o órgão aplicou R$ 48,3 milhões em multas, mas arrecadou apenas 26,8% desse montante. A diferença, conforme a assessoria, se deve porque tais valores podem ser reduzidos em até 90% caso o autuado firme, por exemplo, um termo de compromisso ambiental.
Para Agapan, Estado estimula ocorrência de novos crimes ambientais
Primeira entidade ambientalista do Brasil, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) considera "pouco compreensível" a prescrição de mais de 2,4 mil infrações florestais na Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Sema). A consequência do que seria uma espécie de "perdão", segundo o presidente Leonardo Melgarejo, é que o "Estado está facilitando e estimulando crimes ambientais":
- Esse volume de perdas significa que o Estado não está preparado para dar conta de uma de suas principais funções, que é zelar pelo futuro da sociedade. O desaparelhamento é criminoso.
Conforme o presidente da Agapan, apesar da cifra milionária, as multas - que têm um papel mais pedagógico - são irrisórias se comparadas aos danos ambientais, que são difíceis de serem mensurados "porque se estendem no tempo".
Melgarejo também lamenta que a Secretaria do Ambiente tenha flexibilizado o processo de licenciamento ambiental, dispensando a vistoria prévia. Na época em que anunciou a mudança, a secretária Ana Pellini disse que a meta era reduzir para 180 dias o prazo médio de tramitação dos pedidos (em maio, eram 909 dias) e focar na fiscalização.
Para o engenheiro agrônomo, apostar em uma fiscalização para a qual não há estrutura é uma linha de ação que irá esconder os problemas e comprometer o desenvolvimento gaúcho.
- A sociedade sabe que o Estado não tem braços e pernas para fiscalizar ações ambientais na imensidão do Rio Grande do Sul. O número de fiscais é insuficiente, faltam viaturas e rotinas, além de verba para diárias e combustíveis. O trabalho preventivo se mostra mais eficaz que o fiscalizatório. As multas que prescreveram são um exemplo da ineficácia do trabalho de fiscalização - avalia Melgarejo.
O que diz a legislação
Prescrição
Em 2010, o Superior Tribunal de Justiça editou súmula segundo a qual as multas aplicadas por crime ambiental só prescrevem cinco anos após o término do processo administrativo.
O Decreto Federal 6.514/08, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao ambiente, afirma que "incide a prescrição no procedimento de apuração do auto de infração paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho".
Os trâmites (O que prevê o Código Estadual do Meio Ambiente)
Após a emissão do auto de infração, o autuado pela Sema ou Fepam poderá:
- Apresentar defesa, no prazo de 20 dias, a contar da ciência do auto de infração, ao órgão responsável pela autuação, para julgamento;
- Interpor recurso, no prazo de 20 dias, a contar da notificação da decisão do julgamento, à autoridade máxima do órgão autuante;
- Recorrer, em última instância administrativa, ao Consema, em casos especiais. Essa opção, conforme a Sema, quase não é utilizada.
- Quando aplicada a multa, após o esgotamento dos recursos, o infrator será notificado para efetuar o pagamento em cinco dias. Após esse prazo, serão inscritas na dívida ativa do Estado, para posterior cobrança judicial.