Pouco acima da fronteira brasileira, bem no topo do mapa, uma tensão vai ganhando vulto e provoca reflexões no extremo norte da América do Sul.
A Venezuela, em meio a uma crise profunda e próxima das eleições legislativas nas quais a oposição tende a desbancar o chavismo, subiu o tom com a Guiana.
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O tema, controverso, remonta ao final do século 19, quando a fronteira entre os dois países foi delimitada. O governo venezuelano tem mostrado interesse nunca antes visto pela região conhecida como Essequibo, que representa cerca de três quartos da Guiana.
A investida venezuelana coincide com um momento de forte crise interna e instabilidade. O desabastecimento é superior a 30% dos produtos essenciais. A inflação está roçando nos 100% anuais, e a criminalidade está disseminada.
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O tema se torna mais relevante, em termos geopolíticos, em razão da recente descoberta, pela Exxon Mobil, de uma importante reserva de petróleo na área. Haveria a projeção, por parte da Exxon, de explorar 159.500 quilômetros quadrados em terra e mar. E aí entra a questão: a soberania da região é reivindicada por Guiana e Venezuela.
A pedido do presidente da Guiana, David Granger, o Brasil se mostrou disposto a mediar a negociação entre a ex-colônia britânica e a Venezuela de Nicolás Maduro. O governo venezuelano, porém, não gostou de saber que a presidente Dilma Rousseff recebeu Granger em reunião bilateral no Planalto.
Para professora, tática de Caracas é clássica
O desconforto está sendo tratado com cautela. No Itamaraty, o assunto tem sido motivo de inquietação. Está centralizado, no entanto, no Palácio do Planalto - na mesa do assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia. A leitura é de que Dilma, pouco vocacionada para esse tipo de atuação, teve o cuidado de pôr limites à volúpia de Maduro, preocupada com os danos que poderia causar na fronteira brasileira. O venezuelano, por sua vez, buscaria um assunto que desvie a atenção em relação à crise interna e que crie, utilizando-se de um tema externo, motivo para aumentar a própria popularidade interna - isso já foi feito e deu certo outras vezes.
- É uma estratégia clássica. A instabilidade é grande na Venezuela. Muitas vezes já ocorreu de países nessa situação agirem assim para desviar a atenção. A Argentina fez em relação às Malvinas e a própria Grécia pôs na Alemanha os motivos da sua crise - diz Cristina Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora do recentemente lançado O Brasil e a América do Sul (Editora Alta Books, 292 páginas), em coautoria com Corival Alves do Carmo.
A professora não estranha a participação brasileira em uma eventual mediação. Lamenta o pouco envolvimento da presidente em temas internacionais, mas alerta para o perigo de uma fronteira instável no norte da América do Sul.
Uma fonte do Itamaraty, que pede para não ser identificada, é clara a respeito da crise:
- Granger pediu apoio, e o Brasil vai ajudar.
De um lado, a ONU. De outro, o Mercosul
Contrariado com a conversa restrita entre os líderes de Brasil e Guiana, Nicolás Maduro pediu mediação da Organização das Nações Unidas (ONU). O presidente da Guiana, David Granger, insistiu em envolver o Mercosul.
Em encontro do bloco no dia 17, Granger alertou que violações de fronteiras delimitadas por acordos internacionais podem deteriorar a integração. Reclamou que seu país estaria sendo alvo de provocações.
Sem citar diretamente a Venezuela, Granger tocou no assunto:
- O mundo inteiro já reconhece nossas fronteiras. A Guiana foi obstruída dentro do desenvolvimento de seu próprio território - reclamou o presidente da Guiana, eleito em maio.
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Mostrando a prioridade que dá ao tema, na quarta-feira foi também a Washington. Objetivo: pedir a preservação do território guianense na Conferência dos Estados Unidos sobre Defesa e Segurança do Hemisfério.
Já Maduro projeta para agosto uma conversa multilateral sobre o tema em reunião da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), no Paraguai. Além de chamar Granger de "provocador", uma das reclamações que ele tem feito se dá em relação ao país do qual a Guiana foi colônia. Em recente comunicado, o governo venezuelano definiu como "intromissão" de viés "colonialista" do Alto Comissário do Reino Unido na Guiana, Gregory Quinn, sua declaração de que as reivindicações venezuelanas "não têm fundamento", já que são "águas territoriais da Guiana". A manifestação foi divulgada pelo site inewsguyana.com.
Repetindo declarações que fez quando se queixou dos EUA e da Espanha, no primeiro semestre, Maduro definiu as opiniões de Quinn como "uma campanha de mentiras e intrigas na qual participam a empresa Exxon Mobil e os meios de comunicação internacionais, que têm como objetivo propiciar um conflito entre dois países irmãos".
Conflito centenário
- A controvérsia entre Guiana e Venezuela se dá sobre Essequibo, área de 159.500 quilômetros quadrados situada em solo guianense, mas que as autoridades do governo venezuelano reclamam como parte do seu país.
- Neste momento, é a maior disputa territorial da América do Sul, talvez comparável à existente entre Chile e Bolívia pelas terras perdidas pelos bolivianos na Guerra do Pacífico, que lhe davam acesso ao mar.
- O presidente guianense, David Granger, chegou a advertir, em comunicado, que pretende chamar a atenção da comunidade internacional sobre a disputa territorial com a Venezuela.
- A reação guianense foi produto de um decreto assinado na Venezuela, que modificou suas fronteiras marítimas para incluir o Essequibo, área rica, onde recentemente foram descobertas reservas de petróleo.
- As descobertas foram feitas pela companhia petrolífera Exxon Mobil, empresa americana que lidera nesse território uma grande exploração petrolífera junto com várias companhias locais.
- A disputa entre os países pela região é centenária. Em 1899, um acordo decidiu que uma parte do território pertenceria à Grã-Bretanha, que antes controlava a então Guiana Inglesa.
- A Venezuela sempre considerou a região "em disputa". Baseia-se no Acordo de Genebra, de 17 de fevereiro de 1966, subsequente à independência da Guiana, segundo o qual a região ainda está "por negociar".
- O acordo foi firmado por Grã-Bretanha e Venezuela. Reconhece-se a reivindicação venezuelana sobre a Guiana Essequiba. A Guiana passa a fazer parte do tratado ao se tornar independente, em 1966.