Para o regente catalão Jordi Savall, que passou décadas redescobrindo obras desaparecidas ao longo dos séculos, o aspecto mais difícil de 2011 - a morte de sua mulher e parceira artística, a cantora Montserrat Figueras - talvez seja a música que, mais uma vez, desapareceu.
- É uma parte importante do meu repertório que dividia com minha mulher e que nunca mais vamos apresentar juntos... porque não acho que vá encontrar outra pessoa que se dedique à música da mesma forma. Não conheço nenhuma. Sei de várias cantoras excelentes, mas nenhuma com a mesma energia de Montserrat - disse o músico de 73 anos, baixinho, em um inglês carregado, em entrevista recente na Juilliard School, após um ensaio, em janeiro.
Mesmo com um capítulo de sua música praticamente encerrado, Savall, com ar professoral ditado pela barba farta e os óculos sem moldura, continua prolífico, focado em projetos que celebram a grande diversidade social, racial e étnica da cultura mundial. Em álbum recente, "Bal-Kan: Honey and Blood", brinca com as inúmeras tradições da região dos Bálcãs, por exemplo.
E está passando um tempo mais longo que o normal em Nova York no início deste ano - começando por sua residência anual com o grupo de música antiga, o Juilliard415, que culminou em um concerto de obras barrocas em 31 de janeiro. Apaixonado pela viola da gamba, instrumento parecido com o violoncelo e primo do alaúde, tão popular nos séculos XVII e XVIII, Savall fez um recital solo no aconchegante Weill Recital Hall do Carnegie Hall no dia treze de abril.
Essa apresentação está entre os destaques do festival Before Bach, que começou no dia sete de abril e explora o período anterior ao nascimento do compositor seminal, em 1685. A série inclui programas de grupos como L'Arpeggiata, Pomerium e Les Violons du Roy antes de culminar com as apresentações de Vespers of 1610, de Monteverdi (trinta de abril) e "L'Orfeo" (1º de maio) pelo Coral Monteverdi e os Solistas Barrocos Ingleses, regidos por John Eliot Gardiner.
Com a experiência de cinco décadas como instrumentista, maestro e empresário musical, Savall há tempos é figura de grande destaque, embora ultimamente venha se transformando em um verdadeiro estadista. Causou verdadeira comoção em outubro ao recusar o prestigiado Prêmio Nacional da Música espanhol, citando Dostoiévski em uma longa carta aberta na qual criticou a política de austeridade do governo e seu "desinteresse dramático e profunda incompetência na defesa e promoção das artes e de seus criadores".
Na entrevista de janeiro, acrescentou:
- Está muito complicado agora na Espanha e na Europa como um todo. E, por causa dessa dificuldade, não só temos que fazer muito como muito bem. Em tempos críticos, o que não se pode é desperdiçar. O problema é que há pouca comunicação entre o mundo político e o cultural e a situação na Espanha é desastrosa. Acho que o país simplesmente ignora seu patrimônio musical-
A recusa do prêmio ocorre em um momento em que Savall pensa cada vez mais em seu legado e começa a preparar seus grupos díspares, mas inter-relacionados - incluindo Le Concert des Nations, Hespèrion XXI e La Capella Reial de Catalunya - e a gravadora que fundou, a Alia Vox, a continuarem sem ele. A estratégia de desapego é semelhante àquela aplicada por William Christie, 70 anos, fundador e diretor do grupo de música antiga Les Arts Florissants.
- É muito fácil esgotar ingressos quando estou regendo, mas o que vai acontecer quando eu não estiver mais aí? Temos uma fundação e o que farei nos próximos anos é organizar de vez em quando concertos com jovens músicos no meu lugar. E este ano, pela primeira vez, a Alia Vox vai gravar um grupo jovem sem a minha presença - revela Savall.
Nascido em 1941 em Igualada, a oeste de Barcelona, Savall começou a cantar ainda criança, mas só aos quinze anos pegou o violoncelo pela primeira vez - e quando o fez, teve uma revelação. "Pela primeira vez entendi a frase de Mark Twain: 'Há dois momentos importantes na vida, o dia em que você nasceu e o dia em que você descobre por que nasceu.'"
Não demorou muito para passar para a gamba, na época um instrumento exótico que, por acaso, contava com defensores importantes na Catalunha.
- A linguagem da música barroca não era minha; por isso, fiz uma coisa bem simples. Praticava todo dia, durante muitas horas. Só lia. Nada de ideias. Quando vai a um país estrangeiro e começa a falar, devagarzinho o idioma começa a fazer sentido até que, de repente, faz parte de você. Não é coisa que se aprenda intelectualmente, mas sim através da música."
Entrou para o grupo de Enric Gispert, o Ars Musicae Barcelona, como gambista e foi aí que conheceu Montserrat. Os dois se mudaram para a Suíça, para continuar os estudos na Basileia, e se casaram em 1968. Em 1974, ao lado de Lorenzo Alpert e Hopkinson Smith, formaram o Hespèrion XX, que passou a ser Hespèrion XXI em 2000.
Com ênfase na música espanhola dos séculos XVI e XVII, mas frequentemente indo muito além dela, o grupo criou em seus concertos um clima ao mesmo tempo descompromissado e cuidadosamente controlado. Depois de retornar à Espanha, no final dos anos 80, o casal fundou o grupo vocal La Capella Reial de Catalunya e Le Concert des Nations, orquestra que utiliza instrumentos do século XVII.
Hoje, Savall se ocupa não só com as inúmeras turnês de programas pré-existentes, mas também com o desenvolvimento de novos projetos. Um deles, centrado no Islã, incluirá musicalmente o Afeganistão, a Índia e a China para voltar para o Ocidente via Marrocos e Mali. Outro traça a rota dos escravos, da África às Américas, e um terceiro pretende acompanhar a obra de El Greco.
Recentemente concluiu "War and Peace", álbum e livro relacionados à história do século XVII e seus conflitos brutais. (Foi a época da Guerra dos Trinta Anos e da dos Cem Anos). A música das tradições dos judeus sefarditas, otomanos, alemães, italianos, franceses, espanhóis e ingleses se reúne em uma mistura efervescente, demonstrando que as culturas estavam interligadas muito antes da globalização contemporânea.
- É o reflexo deste mundo maluco - diz ele.
Música
Após morte de esposa, regente catalão retoma carreira
A cantora Montserrat Figueras era mulher e parceira artística de Jordi Savall e faleceu em 2011
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