A foto de Lucas Vezzaro decora um relógio no balcão da cozinha. Passam-se as horas, passam-se os anos. Só não passa a dor de Cleci Vezzaro, 43 anos, por ter perdido o então filho único, aos 14 anos, vítima de uma tragédia a poucos metros de casa.
Estava chuviscando quando Lucas se despediu da mãe para ir até o ponto onde outros colegas já esperavam o ônibus que não chegaria à escola naquela manhã de 22 de setembro de 2004. A parada seguinte seria o lago de captação da barragem da Corsan, 300 metros adiante.
Para 260 alunos de uma escola infantil de Erechim batizada com o nome de Lucas Vezzaro, o filho de Cleci vestiu um par de asas e virou "O Anjo Lucas". Um livro gigante, confeccionado pelos próprios alunos, com idades entre um e cinco anos, conta a história de um menino que adorava as flores e os animais, gostava de nadar e pescar, tinha muitos amigos e estava sempre disposto a ajudar.
Estudantes mostram livro que conta a história de Lucas, que acabou morto após salvar vida de colegas
A biografia de Lucas confirma a narrativa lúdica criada para explicar aos pequenos o porque do nome da escola. Em um trabalho de aula na Escola Estadual Haidée Tedesco Reali, onde Lucas estudava, o garoto descreveu um amigo ideal como "um cara que te ajuda nas horas difíceis". Seu compromisso com a turma, registrado de próprio punho, era "conseguir fazer com que meus colegas me respeitem como eu respeito todo mundo".
Acostumado a nadar no açude do avô desde pequeno, Lucas mostrou ser um cara disposto a ajudar na hora mais difícil. Ao ver que os amigos não conseguiam sair do lago, que chega a oito metros de profundidade, justamente onde o ônibus escolar que transportava 32 estudantes tombou, ele mergulhou novamente. E de novo. E mais uma vez. Até o fôlego terminar.
- O Lucas era maduro e sempre se preocupou com o bem dos outros - relembra a mãe.
Nascimento de Gabriel trouxe alegria à família
Lucas era o maior companheiro de Cleci, já que o marido, Sérgio, era caminhoneiro e viajava bastante. No dia da tragédia, Sérgio teve de adiar a partida devido a problemas mecânicos no caminhão. Correu para a ponte assim que percebeu uma movimentação diferente. Chegou lá quando o filho já estava sem vida. Era tão difícil assimilar a ausência que, na mesma noite, após o sepultamento, Cleci foi preparar uma sopa, enquanto Sérgio arrumava a mesa. Colocou três pratos.
- O Lucas sempre abria a porta quando eu voltava do trabalho. Foi difícil chegar e encontrar a porta fechada - comenta Cleci.
A família mudou de endereço para se apartar de lembranças. O nascimento de Gabriel, hoje com sete anos, deu nova alegria ao lar. A escola inaugurada em 2012 com o nome do filho parece ter ajudado a mãe:
- Cada um tem uma missão. Se a dele era partir com 14 anos, mas deixar essa lição de solidariedade, eu tenho que aceitar.
Albino e Dorildes lembram que a filha Gleidis sonhava aprender violão
Quartos seguem intactos
No jazigo em que Gleidis Sobis foi sepultada, no mesmo cemitério em que estão outras 11 vítimas que residiam na comunidade do km 10, a figura de um anjo acompanha a frase: "Deixei de ser criança na terra para virar anjo no céu".
Desde o nascimento, Gleidis lutava contra um problema na coluna que lhe impunha dificuldades de locomoção. Passou por três cirurgias. A última, realizada pouco mais de um ano antes da tragédia, tinha permitido avanços significativos. Foram sete horas na mesa cirúrgica, consultas mensais em Porto Alegre, até a liberação do médico para fazer atividades simples, como aprender a tocar violão.
O instrumento já a esperava desde o aniversário de 15 anos, no dia 1º de janeiro, mesmo dia do pai dela, Albino. A data que era de festa tripla, virou dia de luto.
- Ela praticamente tinha nascido de novo após a última cirurgia, estava animada, queria ser pediatra - lembra a mãe da menina.
O quarto segue com todos os pertences de Gleidis. Dorildes usa o espaço como refúgio para se sentir mais perto da filha.
A cena é parecida na casa de Neri e Rosane Guareschi. Os bichos de pelúcia continuam sobre a cama onde Bruna dormia. No armário, estão guardados objetos pessoais, como presilhas para enfeitar o cabelo. A garota vivia dias de expectativa pela "festa de 15". Tinha feito o book fotográfico na semana anterior e iria buscar os convites no dia seguinte ao acidente. Restou a foto como decoração na parede da sala. E um vazio no quarto.
Juliano, hoje com 24 anos, sobreviveu à tragédia, mas teve de fazer tratamento psicológico
O trauma dos sobreviventes
A maioria dos sobreviventes procurados pela reportagem optou por não falar. O desconforto provocado pela lembrança é perceptível no tom de voz, na expressão do rosto. Relatos como o de uma jovem que não parou de chorar na festa de 15 anos, porque faltavam amigos especiais naquela data, dão a dimensão da tragédia numa comunidade em que os filhos de uns são como se fossem também dos outros. O salão comunitário que servia como ponto de encontro guarda a memória do velório coletivo dos adolescentes. A própria barragem da Corsan era local de diversão nos dias de calor.
Juliano Antônio dos Santos, agora com 24 anos, conta que costumava nadar no lago, mas hoje nem se atreve ir até lá, 300 metros adiante. A distância exata do local da tragédia é marcada pela placa de interdição da ponte, bem em frente à casa de Juliano.
- Tive que fazer tratamento psicológico. Eu não conseguia dormir, lembrava do acidente todas as noites - revela o jovem, que trabalha com lavagem no mesmo posto de combustíveis em que a mãe de Lucas Vezzaro é operadora de caixa.
Os dois haviam pego o ônibus no mesmo ponto. Mal tinha dado tempo de abrir a janela, na última fila, quando tudo aconteceu.
- Quando vi que o ônibus estava afundando, consegui sair pela janela - relembra Juliano.