Aristides Germani Filho comanda uma equipe de homens e mulheres invisíveis. Ele próprio, educado à moda antiga, discreto no falar e no andar, aprendeu cedo a arte de se mimetizar ao ambiente. É um expert em flanar nos meios mais delicados sem ser notado. A profissão exige.
Aos 72 anos, ele ocupa o posto de chefe do Cerimonial do Palácio Piratini. Em cinco décadas de trabalho, serviu nove governadores de diferentes partidos, organizou centenas de solenidades públicas e ajudou a recepcionar incontáveis convidados, do embaixador do Suriname ao papa João Paulo II. Ao longo desse período, formou-se em História e Jornalismo, atuou como colunista social e cuidou do cerimonial de órgãos como o Ministério da Justiça, a Assembleia Legislativa e a Câmara de Porto Alegre. Mas é na sede do governo estadual que se sente em casa, embora esteja sempre alerta e atento às regras. A invisibilidade é uma delas.
- Nós, cerimonialistas, lidamos com a crème de la crème, mas isso não pode nos afetar. Temos de ser cegos, surdos e mudos - filosofa o porto-alegrense, descendente de imigrantes italianos.
Nesta entrevista, concedida nos salões do palácio, o homem acostumado aos bastidores do poder narra o início da carreira, conta como conseguiu permanecer no cargo apesar das mudanças na política, fala da convivência com os governadores e reflete sobre o futuro do ofício.
Como o senhor se tornou um cerimonialista dos governos?
Meu pai tinha um amigo chamado João Tamer. Era secretário da Fazenda do governo Peracchi Barcellos. Um dia, almoçando conosco, ele perguntou: "Tide, tu queres trabalhar?" Eu devia ter uns 20 e poucos anos. O mais natural seria dar continuidade aos Moinhos Germani, de propriedade da minha família, mas aceitei o convite. Fui ao Piratini e fiquei deslumbrado. O governador me recebeu. Disse que eu poderia ficar. Por coincidência, a chefe do cerimonial, Ingrid Bersch, estava precisando de gente. Naquele tempo, os convites do palácio eram feitos artesanalmente. Lembro que a Ingrid gostou da minha caligrafia. Fiquei preenchendo os envelopes e achei muito interessante aquilo. Eles eram perfumados! Dias depois, perguntei a ela: "Os convites do governador são sempre perfumados?" Ela riu e respondeu: "Não, é que virou meu vidro de perfume dentro da sacola". (risos)
O que o senhor sabia da profissão?
Nada. De casa, trouxe a disciplina, que considero fundamental. Meu pai nos dava o mundo, mas exigia disciplina. Tínhamos horários para almoçar, jantar, dormir. Fora isso, eu já tinha viajado à Europa com a minha avó, o que abriu meus horizontes. Mas a Ingrid me lapidou. Mostrou livros e me ensinou os primeiros passos. No começo, trabalhava só meio turno. Em função disso, acabei me tornando colunista social no Jornal do Comércio e, depois, na Folha da Tarde. Logo passei no concurso e virei funcionário de carreira. Primeiro, como oficial de gabinete. Depois, passei em uma vaga para historiógrafo. Fiquei uma temporada nas relações consulares, mas logo voltei ao palácio.
O que faz um cerimonialista?
Organiza as solenidades públicas. No meu caso, atuo tanto no palácio quanto nos deslocamentos do governador. Se o evento é promovido pelo Estado, eu e minha equipe cuidamos de tudo. Nos casos em que o governador é convidado, damos uma olhada no roteiro e nos asseguramos de que o protocolo será seguido. Quem fala, quem não fala, quem vem antes, quem vem depois, o que é permitido e o que não é. O cerimonialista precisa conhecer esses detalhes e ter a consciência de que quem tem de aparecer é a autoridade, não ele.
Quais são as regras básicas para um cerimonial bem feito?
Primeiro, seguir o protocolo. Se tiver de quebrá-lo, quem quebra é a autoridade, jamais o cerimonialista. Segundo, fazer o possível para que o vocativo seja enxuto, coisa que não vem acontecendo, porque hoje em dia o pessoal quer citar os nomes de todo mundo nas solenidades. Vira uma ladainha. Em terceiro lugar, o cerimonialista não pode deixar transparecer a emoção e tem de ser invisível.
Como se faz isso?
Ser invisível é você saber o local onde ficar para fugir dos fotógrafos. Sempre, numa solenidade, o cerimonialista tem de estar vendo a autoridade, sem chamar a atenção. Se ela precisar, ele está ali, mas não na frente. Tanto homens quanto mulheres devem ser discretos no vestir. Com o homem é mais fácil. No caso das mulheres, é bom evitar roupas extravagantes e brincos grandes.
Como o senhor administra os chamados "papagaios de pirata"?
Quem lida mais com isso é o fotógrafo do governador. Nós tentamos evitar, mas não podemos ser agressivos.
E quais são os requisitos para ser chefe de cerimonial?
O chefe tem de saber tudo de protocolo. Além disso, tem de trabalhar como os demais funcionários e saber escolher a equipe. Sem isso, ele não faz nada. Se eu chefio o cerimonial hoje, é pela minha equipe, que é nota 10.
O que o senhor exige da sua equipe?
Que faça o melhor possível e que seja disciplinada. Todos têm de estar impecáveis e fazer o trabalho com discrição. A minha turma tem tudo isso. Estamos juntos há muito tempo e nos entendemos só no olhar. Está tudo engrenado, e isso dá segurança. O Milton Furtado, meu grande parceiro, trabalha comigo há 30 anos. Os outros, em sua maioria, estão ao meu lado há 15 anos. Passamos por vários governos.
Quando muda o governador, muda algo no cerimonial?
Pode mudar tudo, inclusive o chefe do cerimonial, porque é um cargo de confiança.
Como conseguiu ficar tanto tempo?
O segredo é não se meter em política e fazer sempre o melhor. A cada mudança de governo, temos a sensibilidade de perceber do que o governador gosta e vamos nos adaptando. O governador atual, por exemplo, é uma pessoa muito disciplinada, o que é ótimo. Pontualidade, para Tarso Genro, é algo sagrado.
Em 50 anos, o senhor deve ter testemunhado muitas conversas de bastidores.
Para dizer a verdade, eu não presto atenção. Me condicionei a isso. Eu e minha equipe somos acima de tudo técnicos. Não damos palpite, não tecemos comentários sobre o que vimos ou ouvimos.
O senhor viu o filme "O mordomo da Casa Branca"? Há semelhanças?
Sim, achei maravilhoso. Há semelhanças, sem dúvida. Nós, cerimonialistas, lidamos com a crème de la crème, mas isso não pode nos afetar. Nós temos de ser cegos, surdos e mudos.
O senhor pode resumir as principais características dos governadores com quem trabalhou?
Posso, mas quero deixar claro que não faço distinção partidária e que tenho carinho por todos. O governador Peracchi Barcellos foi a primeira autoridade com quem tive contato. Ele sempre impôs muito respeito. O doutor Euclides Triches era a formalidade em pessoa. Tinha tudo cronometrado. Às 18h em ponto, ele deixava o gabinete. Synval Guazzelli era uma figura encantadora. Já Amaral de Souza era muito doce com os funcionários. Ouvia a gente e dava para sentir que ele gostava disso.
E os outros?
Jair Soares era pontual e disciplinado. Pedro Simon se tornou um amigo. Ele tinha perdido a esposa não fazia muito, então a irmã dele, Alice, fez o papel de primeira-dama. Ela chegou sem preparo nenhum e foi muito querida conosco. Lembro que todos ajudaram. Depois disso, trabalhei com Germano Rigotto, que é um verdadeiro gentleman e tem uma esposa maravilhosa, e com Yeda Crusius, que foi uma mãezona para nós. E agora temos Tarso Genro, um homem inteligente, brilhante. Gosto muito de trabalhar com ele, porque é preciso e muito objetivo.
As primeiras-damas costumam interferir no seu trabalho?
Felizmente, tive e tenho o privilégio de trabalhar com verdadeiras primeiras-damas.
Qual delas foi a mais elegante?
Não posso citar uma. Todas se destacaram. A dona Neda Triches, por exemplo, era chique ao extremo. Com ela, aprendi a arte de receber. A dona Stella Barcellos estava sempre muito bem vestida. A dona Miriam, esposa do Amaral de Souza, tinha uma postura irretocável, e a dona Dioneia, do Jair Soares, era delicadíssima. Lembro também das mulheres dos vices. Com algumas, eu convivo até hoje. A dona Ivone Germano, por exemplo, é uma lady.
Algumas juram ter visto o fantasma de Borges de Medeiros no palácio. O senhor já viu?
Não, mas nunca pernoitei no palácio...
Mudou muita coisa no cerimonial desde os anos 1960?
Sim. Tudo era mais demorado. Um jantar, por exemplo, exigia grande planejamento. Nós, inclusive, elaborávamos o menu. Existia uma sofisticação, um glamour. Com o tempo, o charme do palácio foi morrendo um pouco.
O mundo era completamente diferente, não tinha internet...
Não tinha nada! Hoje é tudo mais prático, mas naquela época todos pareciam ser mais educados. Era raro ver grosserias. Todo mundo se conhecia, e o número de pessoas que frequentava o palácio era bem menor. Havia um clima de deslumbramento nas festas. Os salões eram mais preservados, e os governadores ainda residiam no palácio.
Isso faz diferença?
Quando o palácio deixou de servir de residência oficial, perdeu muito da sua alma. Os governadores sempre foram muito fidalgos, independentemente do partido. Hoje, acho que o palácio deveria ser transformado em museu, porque não tem acomodações adequadas para as necessidades atuais. Poderia servir apenas para receber embaixadores e visitas protocolares.
Vocês não servem mais grandes jantares no palácio?
Não. Primeiro, esses jantares eram oferecidos no salão de banquetes. Depois, no governo Triches, inaugurou-se o Galpão Crioulo. Ele queria oferecer pratos típicos aos convidados. A partir daí, eles passaram a comer churrasco.
O que o senhor achou disso?
Maravilhoso.
Não acabou com o glamour?
Não, porque quem fazia os nossos churrascos era o Plaza São Rafael. O Glaucus Saraiva providenciava os churrasqueiros, mas todo o serviço era do Plaza. Tudo era impecável. Os guardanapos eram adamascados e os copos, de cristal. Era churrasco, mas não era para qualquer um. Hoje não é mais assim.
Há quem diga que o gaúcho tem fama de grosso. O senhor concorda?
Não. Grosso tem no mundo inteiro. E o gaúcho, apesar da soberba, tem as suas delicadezas. É um povo diferente. É quase uma nação à parte.
O senhor já passou por alguma saia-justa nesses anos?
Uma vez, recebemos o embaixador e a embaixatriz do Suriname para um jantar. Montamos um menu sofisticado. O prato principal era carne vermelha. Tudo estava perfeito, até que os garçons começaram a servir os convidados. Eles simplesmente não aceitaram a carne, porque eram hindus. Como a gente ia adivinhar? Foi uma revolução na cozinha (risos). Só sei que prepararam frango ou algo assim em frações de segundo. No fim, deu tudo certo.
Houve mais algum imprevisto que o senhor lembre?
Certa vez, fomos à Fenac em Novo Hamburgo, acompanhando o governador. Era a inauguração da feira, e estava presente o embaixador da União Soviética. A banda começou a tocar, e todos tinham certeza de que era o hino da União Soviética. Mas o embaixador ficou de cara amarrada. Depois fomos descobrir que era o hino da Rússia imperial. Algo parecido aconteceu anos depois, no governo de Antônio Britto (durante a visita do presidente da Alemanha), quando eu não estava no cerimonial. Só sei que, na hora de tocar o hino da Alemanha, colocaram o da antiga Alemanha Oriental. Aquilo repercutiu no país inteiro.
Como foi a sua passagem pelo Ministério da Justiça?
Cuidei do cerimonial dos ministros Armando Falcão e Petrônio Portela por cinco anos. Não era muito diferente do palácio, mas amadureci demais. Até então, morava com meus pais. Lá, aprendi a me virar.
E a experiência de chefiar o cerimonial da Assembleia?
Tive um prazer imenso de trabalhar com algumas figuras lá, em especial com Cezar Schirmer, que foi quem me levou, e com Renan Kurtz. Fiquei 12 anos. Lembro que organizei uma solenidade com o Dalai Lama no plenário. Anos depois, fui homenageado com a Medalha do Mérito Farroupilha.
Qual foi a pessoa mais importante que o senhor já serviu?
O papa João Paulo II. Organizei o encontro com o governador Amaral de Souza. Eu não chefiava o cerimonial, mas o chefe sumiu quando precisaram dele. Então o governador pediu para eu alcançar o presente que ele daria ao Papa. Quando fiz isso, o Papa se antecipou e pegou a caixa das minhas mãos. Foi obra do acaso. Sou católico e fiquei muito emocionado. Até hoje guardo a foto em um porta-retrato.
O senhor está preparando um sucessor?
Tenho vários sucessores. Para citar apenas dois exemplos, os chefes dos cerimoniais da Assembleia e do Tribunal de Justiça foram meus funcionários. E há muitos outros.
O senhor acha que a sua profissão corre o risco de extinção?
Acho que não. Antigamente, eram poucos profissionais. Hoje, são muitos. A profissão está mais difundida e há uma bibliografia grande no Brasil. Quando comecei, não tinha nada.