Em um ano, a marca de moda internacional Mango distribui 60 milhões de peças de vestuário a partir de um elegante centro de distribuição cinza próximo a Barcelona. Correias transportadoras automatizadas zunem pelo edifício como linhas de metrô, classificando e organizando blusas, casacos e outros itens a serem enviados para todo o mundo. Mãos humanas quase não tocam nas roupas.
A cerca de 8,8 mil quilômetros de distância dali, em Bangladesh, a fábrica Phantom-Tac, na zona industrial de Savar, era uma verdadeira colmeia de mãos humanas. Centenas de homens e mulheres debruçados sobre máquinas de costura para produzir peças de vestuário em um sistema de linha de montagem que permanecia inalterado há anos. A velocidade também era essencial, mas isso significava apenas que as pessoas tinham que trabalhar mais rápido.
No primeiro semestre de 2013, trabalhando para atender planos de expansão internacional, a Mango pediu que a Phantom-Tac produzisse uma série de camisas polo e outros itens como amostra. Então, em 24 de abril, o complexo fabril do Rana Plaza desabou, matando mais de 1,1 mil pessoas no desastre mais letal da história da indústria do vestuário, destruindo a Phantom-Tac e outros estabelecimentos que funcionavam no edifício.
A questão agora é que responsabilidade a Mango e outras marcas devem ter para com as vítimas de Rana Plaza, um desastre que expôs a obscuridade e a falta de transparência na cadeia de abastecimento mundial de roupas. Em dezembro, sob intensa pressão internacional, quatro marcas concordaram em ajudar a financiar um fundo histórico de indenização de 40 milhões de dólares para as vítimas.
Entretanto, muitas outras marcas, incluindo a Mango, até agora se recusaram a contribuir com o fundo. A Mango argumenta que não é responsável porque não tinha "formalizado uma relação comercial" com a Phantom-Tac. Os funcionários da empresa dizem que a Mango ainda estava realizando inspeções de qualidade e auditorias da fábrica da Phantom-Tac, e que a fábrica não tinha começado a produzir amostras para um pedido de 25 mil itens.
No entanto, em entrevistas realizadas durante vários meses, supervisores e outros funcionários da Phantom-Tac declararam que o trabalho de produção de amostras para a Mango já havia começado quando o Rana Plaza desabou. O tecido estava sendo marcado e cortado, e alguns trabalhadores dizem que algumas camisas da amostra já estavam sendo costuradas.
- Havia um clima de urgência entre os chefes. Os gerentes nos pediram para terminar os produtos da Mango com urgência. Disseram que se conseguíssemos terminar aquele trabalho rapidamente, poderíamos receber mais encomendas - disse Mohammed Mosharuf Hossain, de 28 anos, que trabalhava em uma seção de corte.
Para as marcas e varejistas internacionais, o Rana Plaza forçou um ajuste das inadequações das suas cadeias de suprimentos. A tecnologia e o investimento estão transformando o segmento superior da indústria, permitindo que a Mango e outras marcas aumentem as vendas, gerenciem estoques mundiais com precisão cirúrgica e introduzam roupas no mercado mais rápido do que nunca - tudo em um momento em que os consumidores esperam ver coisas novas sempre que entram em uma loja.
Contudo, essas marcas dependem de fábricas em países em desenvolvimento como Bangladesh, onde os salários são extremamente baixos e a pressão para trabalhar mais rápido e com menor custo tem gerado problemas bem conhecidos: prédios inseguros, condições de trabalho precárias e violações salariais e trabalhistas recorrentes. Os consumidores sabem pouco sobre essas fábricas, mesmo que as marcas internacionais jurem que as suas roupas são produzidas em ambientes seguros.
A Phantom-Tac poderia ser considerada uma tentativa improvável de provar que uma fábrica de Bangladesh tinha condições de ser socialmente responsável e obter lucro. Ela era, em parte, de propriedade de um espanhol, David Mayor, que havia fechado contrato para produzir encomendas de várias marcas espanholas. Ele se juntou a um missionário do Vaticano em uma área rural de Bangladesh para oferecer um programa de treinamento profissional para mulheres. Além disso, tinha criado um site cujo propósito era possibilitar que os consumidores do Ocidente se conectassem virtualmente com os trabalhadores que costuravam as suas roupas.
Todavia, as pressões sobre a Phantom-Tac quanto ao cumprimento de prazos e à obtenção de lucro fez com que essas metas sociais se tornassem difíceis de alcançar.
Agora, Mayor desapareceu. Ele não respondeu aos pedidos de entrevista por e-mail, e sua família na Espanha se recusou a revelar seu paradeiro. Seu sócio de Bangladesh, Aminul Islam, está na prisão por causa do desabamento.
Fábricas como a Phantom-Tac em Bangladesh e as operações da Mango na Espanha fazem parte das mesmas cadeias de abastecimento, mas podem muito bem ser de mundos diferentes.
Na Espanha, os visitantes do centro de design da Mango, que fica a uma curta distância de carro do armazém de distribuição da empresa, são recebidos no hall de entrada por uma instalação do artista espanhol Jaume Plensa. Um Picasso aparece pendurado no escritório do presidente da Mango, Isak Andic. Os funcionários comem em uma lanchonete cheia de luz e podem relaxar em uma área no andar de cima, repleta de samambaias, conhecida como "estufa".
Essas instalações de alto nível são apenas o começo: a Mango já têm outros centros de distribuição na China, em Hong Kong e na Turquia, e está preparando um enorme complexo na Espanha. No ano passado, a Mango produziu um total de 110 milhões de peças de vestuário e acessórios, em uma década, esperam as autoridades da empresa, a empresa vai produzir 300 milhões de peças de vestuário e praticamente quintuplicar as suas vendas anuais, chegando a 10 bilhões de euros (cerca de 30 bilhões de reais).
O contraste com o ambiente da empresa de Bangladesh era gritante. A Phantom-Tac ficava no quinto andar do Rana Plaza, que havia recebido o sobrenome do proprietário do prédio, Sohel Rana.
Rana, que está preso enquanto aguarda o julgamento pelo desabamento, era um homem forte da política local, com laços estreitos com as autoridades eleitas em Savar e fama de envolvimento com atividades criminosas.
David Mayor era comprador quando conheceu Aminul Islam, que comandava uma fábrica diferente no centro da capital nacional Daca. Eles criaram a Phantom-Tac juntos, o que parecia ser uma boa opção, uma vez que Mayor tinha ligações com as marcas estrangeiras, especialmente as da Espanha.
Mayor também tinha uma agenda social. Em 2007, ele se juntou ao irmão Massimo Cattaneo, um missionário católico romano, e financiou um programa de formação para as jovens de uma área rural de Bangladesh. Chegou a contratar cerca de uma dúzia das alunas que formou em sua própria fábrica.
Ele também queria ajudar os consumidores a compreenderem melhor a fabricação das roupas. Ashley Wheaton, que tinha trabalhado para um grupo sem fins lucrativos de Daca, foi contratado para desenvolver um site no qual os consumidores pudessem digitar um código retirado da etiqueta de vendas de uma peça e, em seguida, conhecer as mulheres de Bangladesh que fizeram a roupa.
- Ele tinha uma visão do que queria realizar. Ele realmente queria mudar a forma como as coisas são feitas - disse Wheaton.
O dinheiro, porém, se tornou um problema. Wheaton foi embora após cerca de sete meses, já que a fábrica começou a cortar gastos. Eventualmente, Mayor também parou de financiar o programa de treinamento, que Massimo manteve por meio do dinheiro da igreja e doações.
Segundo os trabalhadores da Phantom-Tac, as pressões para cumprir os prazos eram implacáveis. O cronograma era tão apertado que vários trabalhadores dizem que os gerentes de nível médio utilizavam dois livros diferentes de contabilidade para esconder as horas extras excessivas ou outras violações salariais. De acordo com os funcionários, houve também um problema com o trabalho infantil em 2012, depois que um comprador descobriu que vários adolescentes trabalhavam como ajudantes, o cargo de nível mais baixo da fábrica.
Em janeiro de 2013, a Phantom-Tac tinha sanado o problema de trabalho infantil e estava tentando fechar novos negócios, inclusive com a Mango. A Mango tinha enviado compradores para a fábrica, bem como inspetores para realizar uma auditoria das condições de trabalho, dizem os trabalhadores.
- Todos nós sabíamos da visita da equipe de auditoria da Mango. Um anúncio foi divulgado no alto-falante. Eles pediram que todos trabalhassem corretamente. Queriam impressioná-los - disse Hossain, o funcionário da seção de corte.
Funcionou. Ativistas dos direitos trabalhistas que vasculharam os destroços do Rana Plaza encontraram formulários de pedidos de camisas polo adultas e alguns itens infantis da Mango para a Phantom-Tac.
Em uma entrevista realizada recentemente no centro de design da Mango, na Espanha, Jose Gomez, vice-presidente de desenvolvimento de negócios internacionais da empresa, citou o envolvimento da Mango em um grande consórcio de marcas que concordaram em ajudar a financiar reformas de segurança em fábricas de Bangladesh como prova do compromisso da empresa com a melhoria das condições das operações.
Mas quanto à questão específica da indenização para as vítimas, Gomez negou que a Mango tinha dado início à produção em Phantom-Tac.
Ao responder se ele estava certo de que nenhum trabalho estava em andamento, Gomez disse:
- O que eu sei foi o que eu lhe disse.
Trabalho inseguro
Acidente em Bangladesh expôs a falta de transparência na indústria de vestuário
Complexo fabril desabou no início do ano passado e matou mais de 1,1 mil pessoas, no desastre mais letal da história da cadeia de roupas
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