Desembarquei na África do Sul em julho de 1994, dois meses após a posse de Nelson Mandela na presidência. Casas confortáveis em bairros tranquilos, jardins bem cuidados e passeios para observar animais selvagens faziam parte do universo das cinco famílias brancas de ascendência britânica que me hospedaram em Springs, cidade industrial e mineradora, distante 50 quilômetros de Joanesburgo.
Os efeitos da eleição de Mandela chegavam aos poucos, sem sobressaltos. Foram modificados o hino, a bandeira e nomes de províncias. As placas de trânsito já estavam traduzidas para meia dúzia de idiomas: além do inglês e do africâner - uma adaptação do holandês colonial -, o xhosa, o zulu e outras línguas nativas. Naquele momento, os negros tinham empregos como jardineiros, domésticas, mineiros e operários. Hoje, são eles os que ainda fazem esses trabalhos, mas também ocupam a maioria absoluta das funções públicas e fazem crescer a classe média.
Na época, havia poucos negros circulando nas áreas onde antes havia restrições a sua presença. Aglomeravam-se em guetos pobres - que se expandiram e se misturaram à cidade de lá para cá. Como eram poucos os que tinham carros, eles se esmagavam em vans - então o único tipo de transporte público -, desaconselhadas para alguém como eu, com mais cara de bôer do que brasileira. Andei e nada me aconteceu.
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Até então, muitas escolas privadas se mantinham alheias às transformações no país, diferentemente de colégios públicos que já deixavam para trás a segregação. Numa manhã, em uma sala de aula na Hoërskool Dr. Johan Jurgens, onde cursei o final do Ensino Médio, estávamos sentados eu e cerca de 20 alunos, todos uniformizados, com gravata, saia 10 cm acima do joelho e cabelo preso (ou cortado de modo que não ultrapassasse o colarinho). Os professores eram bilíngues, mas boa parte ali tinha como língua materna o africâner. Uma amiga traduziu um comentário do professor de biologia que fez um grupinho torcer o nariz:
- Teremos os três primeiros alunos negros na escola no ano que vem. Agora, é obrigatório.
- E o que as meninas ali disseram? - perguntei.
- Que nojo - descreveu.
Brancos, especialmente africâneres que também não se misturavam com ingleses, temiam a explosão de uma maioria que desde 1948 era contida à força. Mesmo assim, havia um clima generalizado de aceitação, talvez de resignação, diante da figura de Mandela. Já os negros estavam em festa.
- Madiba nos libertou. Nossa vida vai melhorar - repetia Lala, uma sorridente diarista.
Passados 18 anos, guardo a imagem daqueles primeiros alunos que destoavam dos demais, lanchando, deslocados, no recreio. Hoje, porém, vejo fotos bem diferentes da escola. Os uniformes continuam os mesmos, mas todos estão visivelmente mais à vontade.