Avistei na rua, por acaso, um grande amigo meu ao lado do meu único inimigo.
Esclareça-se que meu amigo tem conhecimento do que fez meu inimigo tornar-se meu antagonista.
Confraternizava o meu amigo com meu inimigo.
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Depois de avistar essa cena chocante, fui à Bíblia para buscar alívio para meu ódio. Ao contrário de aliviar-me, a Bíblia acirrou meu ódio. Lá está escrito: "Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha".
Eu já desconfiava de que a Bíblia consagrava a férrea oposição entre pessoas quando Jesus expulsou, brandindo o chicote, os vendilhões do templo.
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Depois que vi meu amigo confraternizando com meu único grande inimigo, fui até meu amigo e interpelei-o pelo que considerava uma traição.
Eis a defesa de meu amigo: "SantAna, peço-te que entendas essa dupla lealdade".
Eu de pronto reagi: "Repilo energicamente essa dupla deslealdade, isto sim".
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Volto à Bíblia para reprovar meu amigo que confraternizava na rua com meu público inimigo: "Ninguém pode servir a dois senhores".
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Entendo assim: quem se junta a meu inimigo, nesse exato momento, está se voltando contra mim.
Por mais que me condenem (e confesso, humilde, que há forte motivo para me condenarem), não posso admitir que quem for meu amigo ande na rua se refestelando com um meu inimigo publicamente manifesto.
Há um momento em que se impõe uma escolha: ou fica comigo, ou se entrega para meu inimigo.
E, mesmo que por alguns momentos, meu amigo confraternizou largamente com meu inimigo, então no mínimo não é mais meu amigo. Não sou radical, se o fosse afirmaria que, ao confraternizar meu amigo com meu figadal inimigo, passou a ser também meu inimigo.
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Se há um instante em que sinto vergonha de ser humano, é quando me apercebo de que estou dominado pelo ódio.
Sinto vergonha, também me apercebo agora, porque sou humano: se eu fosse uma minhoca, não teria vergonha nem sentiria ódio.
O único consolo que tenho é de que o mais superior e altruísta de todos os homens, Jesus Cristo, sentiu ira ao ver que os mercadores do templo lucravam com os ensinamentos divinos e expulsou-os do recinto sagrado a chicotadas.
A única consolação que tenho é de que meu inimigo quase de morte feriu-me terrivelmente quando traiu a confiança que nutria por ele.
E isso me parece imperdoável. Tomara que não seja imperdoável, como estou agora pensando que o é, que meu amigo se tenha associado a ele em confraternização pública de rua, enquanto eu amargava meu profundo ódio por meu inimigo.
Sinto receios de que eu carregue para a sepultura esse ódio que me domina, me punge e me devora.