Quando vi pela TV línguas de fogo de 20 metros de altura consumindo o Mercado Público, sábado à noite, peguei o carro e toquei para o Centro. Como quase todos os porto-alegrenses, tenho uma ligação afetiva com o Mercado. Eis a realização da arquitetura - fazer com que as pessoas se identifiquem com a paisagem erguida pelo homem.
Um prédio como o Mercado é mais do que um prédio. É um monumento. Um símbolo. Porque existe há quase 150 anos e porque ocupa com imponência e graça uma região central da cidade, sim, mas também, e principalmente, porque se mistura às lembranças das pessoas. O Mercado está na história da cidade e está na história de cada habitante da cidade.
Não é pouca coisa.
Um ser humano se molda a partir da construção da sua história. Você tem, na sua cabeça, uma história pessoal. Você acredita nessa história e é preciso ser coerente com ela, ou você sofrerá uma ruptura psicológica. O Mercado, com sua relevância na história da cidade, agarra-se à história de cada morador da cidade e se intromete nessa história e se mescla a ela.
Então, na noite de sábado, não era um prédio majestoso, belo e sesquicentenário que parecia estar sendo destruído. Era um pedaço da história da cidade e da minha história também. Um pedaço de mim, como diria o Chico Buarque. Por isso fui para o Centro.
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No Centro, o que vi me deixou entre surpreso e encantado. Surpreso porque, no começo do incêndio, tive a certeza de que o Mercado estava morto, que seria posto em ruínas para sempre, como uma Cartago calcinada e salgada pelas legiões romanas. Mas em pouco tempo, em coisa de duas horas, os bombeiros conseguiram controlar o fogo. E foi isso que me encantou. A habilidade, a técnica, a inteligência e a coragem dos bombeiros. Eles salvaram o Mercado Público. Porto Alegre, você, eu, todos nós devemos aos bombeiros uma parte da nossa história. Uma parte importante do que somos.
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Foi no Mercado, no velho restaurante Treviso, que Salim Nigri urdiu a primeira torcida organizada do Grêmio, em meados dos anos 1940. O Inter já tinha a sua torcida, fundada por Vicente Rao, que trabalhava no Centro e que também frequentava o Treviso. Salim e Rao, portanto, eram adversários. Mas eram amigos, se respeitavam, se admiravam. Até o fim da vida, Salim recordava de Rao com carinho. E lembrava das noitadas de chope e risadas no Mercado Público.
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Não duvido que tenha sido no Treviso que Lupicínio Rodrigues pela primeira vez batucou na caixinha de fósforos os acordes do Hino do Grêmio, composto por ele em 1953. Lupicínio estava sempre por lá. Lá, conheceu dois dos maiores nomes da Música Popular Brasileira em todos os tempos: Francisco Alves, o "Chico Viola", e Noel Rosa.
Noel Rosa era o Chico Buarque da época, Chico Viola era o Roberto Carlos. Numa de suas visitas ao Estado, os dois passaram mais de um mês em Porto Alegre, cantando e compondo. Noel se apaixonou por uma mariposa que militava nas imediações da Riachuelo. No dia em que ele voltava para o Rio, chovia em Porto Alegre. Como não havia se despedido dela, teceu-lhe uma canção. Deve tê-la deixado triste, mas , pelo menos, a imortalizou:
"Até amanhã
Se Deus quiser
Se não chover
Eu volto pra te ver, ô, mulher".
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Noel e Chico Viola voltariam outras vezes à cidade e ao Treviso. Dizem que Chico Viola sempre se sentava na mesma cadeira no restaurante e, quando ele morreu, em um acidente de carro, o dono do Treviso separou essa cadeira e a pendurou a parede, para que ninguém mais a ocupasse. No dia do fechamento do Treviso, a cadeira foi cedida ao Gambrinus e, no Gambrinus, também foi alçada à parede, e continua lá, suspensa, lembrando que Chico Viola frequentava o Mercado, assim como Noel, Lupicínio, Salim, Rao e todos nós.