Em algum momento da evolução, um hóspede emblemático encontrou conforto nas células humanas. Ainda que a suspeita seja de que esse inquilino acompanhou o engatinhar da humanidade, ele só foi descoberto na década de 1960. Chamado de retrovírus endógenos (ERV), ele compõe 8% da identidade genética humana e intriga os cientistas.
Um artigo publicado na revista especializada Science lança luz sobre o mistério. Os pesquisadores defendem que os ERVs trazem mais benefícios ao organismo do que prejuízos. Apesar de vinculados a doenças como lúpus e câncer, eles podem ajudar no funcionamento do sistema imunológico, inclusive para o combate ao vírus da Aids.
- Desde que foram descobertos, muita atenção foi atraída para os possíveis efeitos dos ERVs no nosso bem-estar. Mas a extensão completa da presença deles no homem só se tornou aparente com a publicação do rascunho do genoma humano, em 2001. Agora, sabemos que eles estão em todos os vertebrados e isso nos fornece algumas pegadas na história da evolução humana - diz Jonathan P. Stoye, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisa Médica, no Reino Unido, e um dos autores do estudo.
Segundo Stoye, os ERVs foram descobertos em galinhas por Robin Weiss. Já o primeiro retrovírus endógeno humano foi encontrado 10 anos depois, por Reinhard Kurth. Enquanto uma linha de cientistas defende que esses micro-organismos podem exercer o papel de vilões, sendo responsáveis por cânceres e doenças autoimunes, como a esclerose múltipla, Stoye e Robin A. Weiss, da Divisão de Infecção e Imunidade da University College London, também no Reino Unido, apostam em um cenário otimista.
- A formação da placenta como uma das contribuições positivas dos ERVs é um indício de que esses retrovírus podem, sim, ter funções mais relevantes do que as conhecidas até agora - observa Stoye, que estuda o comportamento dos ERVs há 20 anos.
Stoye acredita que os indícios fornecidos por estudos do genoma sugerem que as funções positivas se sobrepõem às negativas.
- A partir dessas pesquisas, podemos saber exatamente que funções eles têm. Eles guardam o segredo de doenças que ainda não foram completamente entendidas pela medicina, como as autoimunes, e podem fornecer a cura ou tratamentos mais eficazes para elas (...)Sabemos o que eles desenvolvem de positivo, mas não há confirmação dos efeitos negativos em humanos, apenas em animais, como os coalas.
Para Stoye, a sobrevivência do vírus no genoma humano pode indicar que apenas as funções boas foram mantidas ao longo dos milênios.
- A partir da Teoria da Evolução, as células ruins foram automaticamente descartadas pelo organismo - justifica.
Seguindo essa linha, conforme o pesquisador, os ERVs podem ser ativados quando o organismo precisa aumentar as suas defesas, como acontece em infecções pelo HIV. Ainda conforme o cientista, os genes desses micro-organismos poderiam inibir a formação de tumores.
- Sabemos que eles regulam a reprodução de proteínas específicas, limitando e inibindo a formação de células que levariam ao câncer pela reprodução descontrolada - avalia.
Hipóteses No artigo publicado na Science, a dupla também aponta três principais hipóteses sobre a influência dos ERVs na modernidade. Uma delas é que esses micro-organismos podem desencadear epidemias em espécies diferentes da do hospedeiro inicial, um processo chamado xenontropismo. Isso ocorreria pela ação original do vírus ou por uma combinação com outros. As duas teses restantes estão ligadas a influencias positivas ou negativas na ação de genes e proteínas essenciais para o funcionamento do organismo.
Aluísio Segurado, diretor-secretário e membro do Comitê de Retroviroses da Sociedade Brasileira de Infectologia, explica que as sequências genéticas dos retrovírus endógenos têm características de vírus exógenos - aqueles que atacam o organismo de fora para dentro.
- No entanto, elas podem ser defeituosas, já que não possuem elementos de uma sequência completa. Apesar disso, podem expressar uma informação genética que leva à produção de proteínas, o que pode ou não ser benéfico. Até agora, não se sabe com clareza o que (os ERVs) causam nas nossas células - diz o médico.
Segurado cita o desenvolvimento de doenças autoimunes, o lúpus e a artrite reumatoide, por exemplo, como uma das implicações negativas da presença de ERVs no organismo humano, de acordo com estudos. Outro ramo da ciência, no entanto, usa argumentos parecidos com os de Stoye em defesa desses micro-organismos.
- Eles especulam se, após vários períodos de dormência, do ponto de vista evolutivo, somente as sequências benéficas teriam sobrevivido. Elas seriam aquelas que interfeririam e anulariam os genes danosos, como os oncogenes (relacionados ao surgimento de cânceres). Algumas sequências dos ERVs teriam sobrevivido justamente para inibir a ação dos genes defeituosos quando o organismo já não tem mais essa capacidade de reparação - explica o médico.
Camila Romano, pesquisadora do Laboratório de Virologia do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Instituto de Medicina Tropical, ligado à Universidade de São Paulo (USP), explica que, embora a grande maioria dos ERVs não esteja mais ativa, aqueles que conseguiram ser domesticados pela evolução são capazes de sair do estado latente e produzir proteínas. Essas expressões genéticas, porém, têm características singulares.
- Pode haver uma na mãe que é diferente da encontrada no filho, ainda que o processo de transmissão ocorra pelo DNA, hereditariamente.
A bióloga ressalta ainda que outro desafio dos cientistas é, se realmente eles chegarem à conclusão de que os ERVs se destacam por ações positivas, identificar quais estão ligados à proteção ou à evolução de cada doença.
- Os ERVs que são expressos em pacientes com HIV não são os mesmos encontrados no organismo que sofre com esclerose múltipla, pois são de famílias diferentes. O fato é que, mesmo se existir relação entre ERV e doenças, talvez ela indique que eles são um mal necessário, evolutivamente mantido para contrabalançar os benefícios trazidos por eles.
Palavra de especialista: agregados ao genoma
"Há cerca de 90 milhões de anos, os retrovírus endógenos (ERVs) infectaram todos os vertebrados. No nosso caso, temos ERVs compartilhados com todos os mamíferos. Ou seja, os retrovírus infectaram os genomas ancestrais e não foram eliminados. Ainda que não costumem infectar óvulos e espermatozoides, isso acabou acontecendo com esses micro-organismos em algum momento da evolução. Ao infectar uma célula germinativa, eles se liberaram e replicaram o genoma deles, só que como DNA. Ao chegar ao núcleo da célula, abriram um espaço e se integraram ao nosso genoma, exatamente como o HIV faz. Geralmente, o despertar de ERVs não é ao acaso. Experimentos em laboratório indicam que vários fatores podem acordá-los, como a vitamina D e o vírus da herpes." Camila Romano, pesquisadora do Laboratório de Virologia da Universidade de São Paulo