Catarino Brum Pereira combina o apelido e o ofício à perfeição. Tio Cata é papeleiro e monta numa carroça puxada por Raio X - batismo que contemplou o aspecto descarnado do lombo quando o cavalo foi resgatado do abandono - para catar material reciclável pelas ruas de Gravataí. Resiste a chamar de lixo as sobras que garantem o sustento da mulher, dos três filhos e do enteado, trocadas por dinheiro ou transformadas em móveis da casa erguida com retalhos de madeira sem muita simetria. Conformaria-se como mais uma criatura anônima, não fosse a convicção de que carrega outra sina. O animal arrasta uma carga de papelão, alumínio e plástico e também livros a R$ 10, a brancura das páginas contrastando com a imundície do entorno. Tio Cata empenhou uma soma que não tinha para consertar uma incorreção. Cansou de ver a primogênita, Gabriela, nove anos, deixar a escola moída pela chacota dos colegas.
- Ô, mãe, aquela lá me chamou de maloqueira, filha de papeleiro - relatava a aluna da 3ª série na saída.
A dona de casa Elisângela, 33 anos, exaspera-se ao lembrar, inconformada com a humilhação. Catarino pede a atenção da filha e recorda a conversa do dia em que tomou uma decisão.
- O que o pai disse para ti? Quem vê cara não vê coração - ensina. - Eu sou papeleiro e escritor - explica o catador, sublinhando com ênfase o "e", como se uma lide não se apartasse da outra, como se a poesia dependesse do lixo.
Atrapalhado com cifras e datas, Catarino alega que amargou 50 anos sem rabiscar estrofes, mas conta também que começou aos 19, tornando o cálculo improvável quando se sabe que sua idade hoje é 62. Apresenta-se como um prodígio, detentor de um talento que necessitava se multiplicar em centenas de exemplares. É natural de Uruguaiana, de onde trouxe a impostação de trovador, e está na Região Metropolitana há três décadas, uma delas como carroceiro. Segundo de 22 irmãos nascidos da mesma mãe, trabalhou como pedreiro, carpinteiro, sapateiro e vendedor de coco. Não sabe se concluiu a 4ª série. Constrange-se com o pouco estudo - e utiliza essa carência para entoar os reveses de uma subsistência de bastante dificuldade.
- O dinheiro é que alavanca, consegue mexer com as coisas paradas - teoriza ele, que levou um despiste do proprietário da única editora que visitou. - Vivo reciclando a vida e transformando em poesia. Morre o homem, fica a fama.
Determinado a calar os colegas que riam de Gabriela, procurou a Gráfica Parque dos Anjos, perto da margem do Rio Gravataí onde mora. Fez um orçamento para 500 cópias e logo se decidiu por um salto mais arriscado. Imprimir mil livros significaria um aumento pequeno no total do serviço, e o gerente aceitou a forma de pagamento sugerida pelo cliente: "pedalar" os R$ 1.490 em parcelas incertas, sem data marcada. Catarino passou então a levar manuscritos em folhas sovadas pelo manuseio e uma porção de textos digitados - prefere o computador à máquina de escrever, que pegou chuva e acabou descartada.
- Tenho uma poesia nova. Vou falar para ti - anunciava ao arte-finalista Matias Jardim da Silva, 28 anos, que deu à pilha de rimas como "Na vida se aprende tudo / mas nunca tudo se sabe / porque esta tal de internet / bagunçou a terceira idade" a aparência de livro, ilustrado com figuras da internet.
Entregue em janeiro, o pedido esbarrou num contratempo. A vizinhança que prometera se apresentar para comprar os volumes de Escritor e Papeleiro havia se dispersado por conta das férias de verão. Muitos nem retornaram, mudaram-se, e a edição inicial da estreia literária de Catarino, amontoada, ameaçava encalhar. Apesar do início lento, a empreitada exibe, 11 meses depois, um desempenho animador, com mais de 500 exemplares vendidos.
- Lê. Se não gostar, devolve. Se gostar, compra - orienta ao abordar os passantes, salientando que só um foi refugado.
Ilda Teresinha Pereira, dona de casa de 48 anos, aceitou a proposta. Estima que o livreto de 36 páginas tenha conquistado outros 10 leitores na família.
- O senhor conseguiu usar a criatividade e até fez propaganda - elogia Teresinha, aprovando o modelo editorial que mescla literatura e anúncios.
Os 29 poemas incluem homenagens a Casa de Consertos Eletromáquinas ("E na parte eletrônica / podemos contar com Élio / que é um homem do povo / onde seu aparelho chega quebrado / e sai com garantia de novo") e Casa de Carne Maciel ("O Regis pra quem não sabe / é o gerente e o patrão / e atende todos os fregueses / na maior satisfação"), destacando os telefones dos comerciantes. O autor distribui cartões de visita que oferecem "criações de poesias para qualquer ocasião". Não estipula valor, e quem faz encomendas não se preocupa em perguntar o preço.
- Sei que o dinheiro é importante, mas nem tudo que brilha é ouro, pois quem tem um grande amigo já possui grande tesouro - declama. - O importante é o meu trabalho aparecer.
Catarino quer viver de um sonho pelo qual se constrange em cobrar, mas as despesas aparecem. Uma enchente deixou um rastro de gastos mais urgentes, e R$ 890 continuam pendurados na gráfica. Quando o lixo não rende o suficiente para preencher a despensa, o carroceiro compra fiado. Por R$ 1,80 o quilo, o alumínio é dos artigos mais lucrativos na reciclagem, mas um dia inteiro revirando lixeiras não rende nem 500 gramas de latas. Catarino vende um livro hoje, dois amanhã, e os trocados se perdem em miudezas antes que acumule quantia considerável para o abatimento da dívida. O escritor não deixa de produzir, e o vizinho Rivair Lopes, almoxarife, aparece para corrigir a ortografia. Os textos para a próxima publicação estão prontos - Meu Cachorro Não Tem Raça, A Ganância, Meu Pé de Roseira, Pra que Beber, Não Tenho Pressa, O Veio do Bico Doce. Reciclando a Vida trata do sonho de seguir escrevendo. Termina assim:
E com meus agradecimentos, quero aqui finalizar
Pedindo ao pai celestial, que venha a todos abençoar
E que no jardim desta vida, seja repleta de paz e amor
São os votos deste poeta e deste humilde escritor
Que conta com a tua ajuda, pra ser seu patrocinador.