Um dos mais festejados choradores do país, aquele que o papa do cavaquinho Waldir Azevedo considerou seu principal discípulo. Um cantor de sambas-canções que emula Francisco Alves e transporta o ouvinte diretamente para os anos 1940. Um passista branco ensinando um negro admirado com sua técnica de dança que mistura o samba à "capoeiragem" - "Que é diferente, da capoeira", ressalta. Uma cantora da Era do Rádio que se diz à vontade em apenas dois lugares:
- Um teatro cheio de gente e um boteco cheio de bêbados.
São personagens de Pelotas, em torno dos quais se estabelece uma das mais tradicionais rodas de samba e choro da região. Todas as sextas e sábados, ela tem lugar no bar e restaurante Liberdade, tradicional reduto da boemia pelotense à noite e, por paradoxal que possa parecer, durante o dia, especialmente na hora do almoço, "a segunda casa dos colonos que saem da zona rural e vão à cidade para vender seus produtos".
Esta frase está entre aspas porque reproduz as palavras de uma agricultora que é entrevistada pela dupla Cíntia Langie e Rafael Andreazza. Jovens cineastas de Pelotas, os dois assinam a direção do documentário de longa-metragem O Liberdade, no qual desfilam todos os boêmios citados na abertura deste texto. Eles e mais Vitor Ramil e Yamandu Costa, o primeiro cantando Juízo Final, de Nelson Cavaquinho e Elcio Soares, e o segundo exaltando "a resistência pelotense que não deixou o chorinho morrer quando ninguém dava bola para o gênero".
O filme, que custou meros R$ 23 mil e já percorreu festivais de La Paz a Marselha, entra em cartaz nesta terça-feira (4/9) na Cinemateca Paulo Amorim, em Porto Alegre, "por enquanto em apenas uma sessão diária (às 19h30min)", conforme a programadora Mônica Kanitz. Não perca. Pela capacidade de síntese da atmosfera deste lugar único, trata-se de um registro histórico de um autêntico patrimônio da cultura do Estado.
ZH esteve no Liberdade na semana passada, em dia de mocotó e churrasco no almoço - que é servido no sistema "bufê a quilo" e só passa dos R$ 10 se o sujeito estiver com o apetite de um trabalhador que lidou na roça desde antes de o sol nascer. Fala-se até dialeto pomerano entre suas mesas enfeitadas com toalhas xadrez que, quando o sol vai embora, são arredadas abrindo espaço para aqueles que não aguentam apenas ouvir e se arriscam a dançar. No centro da pista improvisada, o piso de pedras claras, de tão gasto, escureceu.
- O que sustenta o Liberdade, financeiramente falando, é o dia - diz Dilermando Lopes, proprietário desde a inauguração, em 10 de maio de 1974. - Abri o restaurante aproveitando a proximidade dos pontos dos ônibus que vêm do interior do município. O samba foi incorporado com a frequência dos músicos e a proximidade que eles tinham do Nogueira - completa, referindo-se ao cofundador e boêmio até nos documentos Carlos Nogueira.
Hoje localizado na Rua Marechal Deodoro, centro de Pelotas, o bar teve quatro outras sedes, todas nas redondezas do Terminal de Ônibus da Colônia. Agora fica entre a loja Só 2 Reais e a Renovar Brechó e Catálogos, a alguns passos do terminal e defronte a um ponto secundário no qual estacionam os coletivos vindos da zona rural.
Fiéis, os boêmios sempre acompanharam estas mudanças. Muito disso se deve ao fato de que foi no Liberdade que o grupo Avendano Jr. e seu Regional se estabeleceu desde os primeiros dias de seu funcionamento. Os personagens citados neste texto, de algum modo, por parceria musical ou simplesmente admiração, são dedicados a manter o legado do grupo. É na igreja do Avendano que a turma do Liberdade reza. E vai continuar rezando, mesmo que o líder dos choradores, o cavaquinista para quem Waldir Azevedo, o compositor de Brasileirinho, deixou o seu instrumento de estimação, tenha morrido em junho passado.
Avendano morreu aos 72 anos, não sem antes ver o belo filme que ele e seus companheiros de seresta inspiraram (leia mais sobre Avendano Jr. e o Liberdade abaixo).
Assista ao trailer do documentário O Liberdade:
Celebração da boemia
Filme narra história de tradicional bar de choro de Pelotas
Documentário "O Liberdade" entra em cartaz nesta terça-feira em Porto Alegre
Daniel Feix
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