Ao completar duas décadas, a lei que colocava o Rio Grande do Sul um passo à frente na discussão sobre o tratamento psiquiátrico no país parece reacender uma discussão. Anterior à era do crack, a reforma que previa o fim gradativo dos antigos manicômios - e que serviu de base para uma lei nacional 10 anos depois - enfrenta uma questão com variáveis inversamente proporcionais.
O atual aumento no número de casos pela epidemia da pedra protagoniza uma polêmica frente à redução da oferta de leitos psiquiátricos. Nos últimos 10 anos, com a promulgação da lei antimanicomial no Brasil, o Estado acompanhou a redução em pelo menos 40% no número de leitos em hospitais psiquiátricos. Atualmente, a Secretaria Estadual de Saúde contabiliza 671 leitos em hospitais gerais para álcool e drogas no Rio Grande do Sul. Mas, apenas na Capital, a Defensoria Pública recebe mensalmente uma média de 45 pedidos de internação psiquiátrica por via judicial - mais de 80% deles relacionados com o crack.
Entre todos os dispositivos de atenção à saúde mental, o Ministério da Saúde confere aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) um valor estratégico na reforma psiquiátrica brasileira. Para a pasta, a partir do acompanhamento clínico e da reinserção social, a criação dessas clínicas possibilita a organização de uma rede substitutiva ao Hospital Psiquiátrico no país. Substitutiva, não complementar. Atualmente, são 152 unidades em um estado de quase 500 municípios. Dessas, apenas duas das destinadas a usuários de drogas e álcool têm atendimento 24 horas.
Um ano seria o período ideal de internação
Enquanto números revelam um problema estrutural, especialistas ainda divergem sobre a ênfase no tratamento de recuperação de dependentes da droga. O governo estadual oferece 21 dias de desintoxicação. Depois, a sequência dos cuidados vira responsabilidade municipal. Para a coordenadora da equipe de Saúde Mental, Károl Veiga Cabral, a Secretaria Estadual da Saúde preconiza o tratamento ambulatorial.
- A reforma não é contra a internação, mas se mil leitos forem abertos no Rio Grande do Sul, ainda assim não será resolvida a questão da dependência de drogas. O que o paciente terá é um tratamento de "porta-giratória". Ele vai sair e voltar para o hospital. É necessário investir no acompanhamento destas pessoas - defende.
Para o médico psiquiatra Rogério Alves da Paz, que durante dois anos estudou técnicas de tratamento à dependência química nos Estados Unidos, em programa vinculado ao National Institute on Drug Abuse, as três semanas, embora ajudem a limpar o organismo dos pacientes, acabam desperdiçadas por faltarem espaços adequados para dar continuidade ao tratamento.
- Grande parte das internações é involuntária, então é difícil que, após a desintoxicação, os dependentes estejam estimulados o suficiente para continuar o tratamento em sistema ambulatorial. Uma possível solução é a criação de unidades de internação por tempo prolongado, que podem durar até um ano - argumenta.
No Estado, as atividades comemorativas dos 20 anos da promulgação da lei se encerraram nesta semana. O debate imposto pelos novos desafios, no entanto, parece estar longe do fim.
Tempo insuficiente
- O Estado prioriza os investimentos no tratamento ambulatorial de dependentes de crack. De acordo com a coordenadora da equipe de Saúde Mental da Secretaria Estadual de Saúde, Károl Veiga Cabral, a internação para desintoxicação de 21 dias só é válida se, após este período, o paciente receber um acompanhamento efetivo da rede.
- Na psiquiatria, há uma corrente que defende o prolongamento do período de desintoxicação. Para o médico Rogério Alves da Paz, o tratamento ambulatorial se torna insuficiente devido ao curto tempo de internação.
- Nos Estados Unidos, estudos mostraram que após um ano de internação, a chance de recaída é reduzida em 85% - argumenta.
Na história de Felipe
- Acompanhado durante três anos por ZH, com autorização do juizado da infância, Felipe teve sua história retratada em um caderno especial de 16 páginas, na reportagem Filho da Rua (a íntegra está disponível pelo link: http://clic.rs/especialfilhodarua)
- Aos oito anos, o menino já era dependente de crack. Depois de pedir ajuda ao conselho tutelar, foi internado por 21 dias em uma clínica, mas no mesmo dia da alta, voltou para as ruas. Desde então, foi internado outras seis vezes, sem sucesso. Aos 14 anos, continua lutando contra o vício.
Veja o vídeo sobre a trajetória errante de Felipe
Em galeria de fotos, veja imagens das andanças de Felipe pelas ruas da Capital