À margem das estatísticas oficiais, milhares de brasileiros realizam abortos verbais diariamente. Ao renegar com palavras a paternidade e o cuidado de seus descendentes, ajudam a formar uma geração de filhos da mãe - mais exposta à violência e ao crime pela desestruturação familiar.
Estimativa realizada pela Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ), com base em declarações dos alunos no Censo Escolar de 2009, indicou que 4,8 milhões de estudantes brasileiros não tinham o pai em seus registros, o que representava 9,1% do total. Para uma das pioneiras no estudo da falta de reconhecimento paterno no país, a gaúcha Ana Liési Thurler, a ausência seria ainda maior: depois de analisar 180 mil certidões em sua tese de doutorado em sociologia pela Universidade de Brasília, projetou que 30% dos filhos não eram reconhecidos pelo homem que os gerou. O estudo deu origem ao livro Em Nome da Mãe, publicado em 2009. Atualmente, com o avanço de políticas públicas como o projeto Pai Presente, lançado pelo CNJ em 2010, a pesquisadora estima que as certidões de nascimento sem o pai responderiam por 15% a 20% dos registros - o que representaria até 600 mil crianças sem pai.
As origens da ausência paterna são atribuídas a uma série de questões históricas, culturais e até religiosas. Ana Liési lembra que a Igreja deteve por séculos o monopólio e a lavratura dos registros de nascimento, e que apenas o marido da mãe era aceito como pai:
- Com a criança que nascia fora do casamento, ninguém teria qualquer dever. No Ocidente cristão, essa criança era "encontrada", eximindo o pai de qualquer vínculo ou compromisso.
Mesmo depois da criação do Estado Laico, a tradição de só reconhecer os filhos oficiais se manteve. Somente em 1989 o artigo que reconhecia apenas como pai o marido da mãe foi revogado. Mas o reconhecimento formal está longe de significar garantia de afeto.
Para estimular pais e mães a exercerem seus papéis independentemente do estado civil, o presidente da Associação dos Pais e Mães Separados (Apase), Analdino Rodrigues Paulino Neto, entende que os pais precisam colocar os interesses dos filhos acima dos seus. Atualmente, um terço das crianças e adolescentes brasileiros são filhos de pais separados.
- A troca de farpas entre os pais prejudica muito a criança. As mães às vezes são culpadas pelo afastamento do pai, porque depois da separação dificultam o convívio, dizem que só querem a pensão - pondera.
Voluntária no projeto Pai? Presente!, desenvolvido em São Sebastião do Caí, a psicóloga Fátima Piovensan lembra que a figura paterna representa a imposição de regras e limites. Caso esse papel não seja exercido por alguém na vida do filho, os riscos são evidentes.
- Em quase 100% dos casos graves de dependência química há uma ausência real do pai ou de uma atitude de pai - adverte o psiquiatra Rogério Alves da Paz, que atende adolescentes dependentes.
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Ausência sentida
É tão raro encontrar um pai nas filas de visita aos adolescentes internados na Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), que funcionários dizem que é preciso rezar para um aparecer. A proporção, de 10 mulheres para cada homem entre os visitantes na Unidade Carlos Santos, porta de entrada no sistema, reflete uma realidade comum aos meninos que foram parar ali por infrações como tráfico, roubos e homicídios: 61,9% deles não têm o pai presente em suas vidas - e 19% nem foram registrados pelos genitores.
Em versões diferentes, a falta do pai conta sempre a mesma dor.
- Nunca conheci meu pai. Se for passar por ele na rua, não sei reconhecer. Se for branco, não sei, se for preto, também não sei. Não sinto nada. Nem amor, nem ódio, não tem como - diz um adolescente de 17 anos, que já está internado pela terceira vez, com histórico de tráfico e interceptação de moto roubada, mas pretende "mudar de vida" para poder cuidar do seu filho, de 10 meses.
Há outros internos que conhecem o pai, mas viram suas expectativas se transformarem em lembranças de rejeição, como no caso de um adolescente de 15 anos. Filho de um traficante que abandonou a mãe quando ele tinha oito meses, foi criado por um casal em Viamão. Aos 12 anos, colocou as roupas em uma mochila e saiu de casa, decidido a procurar pelo pai no bairro Chapéu do Sol, em Porto Alegre.
- Eu disse que queria morar com ele, mas ele ficou me enrolando. Então peguei a mochila e fiquei na rua - conta o adolescente, que acabou acolhido pelo tráfico.
Os pontos de venda de drogas são um refúgio atraente porque oferecem, além de abrigo, mais dinheiro do que qualquer mesada. Com 16 anos, outro adolescente diz que ganhava de R$ 3 mil a R$ 4 mil por semana. Mesmo assim, o que ele realmente gostaria dinheiro algum poderia comprar: a presença do pai.
Vínculos recuperados
Por duas vezes em sua infância, o estudante William Gabriel Acosta da Luz, de São Sebastião do Caí, tirou zero em trabalhos escolares que pediam para desenhar a árvore genealógica da família. Como não tinha o pai na certidão, nem conhecia os avós paternos, o aluno que hoje tem 13 anos acabava repreendido por entregar as tarefas pela metade.
- Valia cinco pontos, mas eu só conseguia fazer a parte da família da mãe, e aí tirava zero - lembra.
Graças ao projeto Pai? Presente!, desenvolvido em São Sebastião do Caí, uma terceira vez não vai acontecer. Capitaneada pela ONG Brasil Sem Grades, em parceria com a prefeitura, o Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública, além de escolas, hospitais e cartórios, a iniciativa mobiliza a cidade desde 2009 em nome do reconhecimento paterno.
Dos 270 casos de crianças e adolescentes identificados na época sem o pai, mais de 200 já foram reconhecidos oficialmente - os restantes aguardam a tramitação da papelada. O pontapé inicial foi dado com reuniões de sensibilização com as mães nas escolas e, a partir de um trabalho integrado entre as entidades, se estabeleceu mutirão permanente.
- Claro que se ficar só nos documentos é pouco, mas a gente nunca consegue dar o segundo passo se não der o primeiro - diz o empresário Luiz Fernando Oderich, idealizador do projeto.
No caso de William, a reaproximação com o pai começou há dois anos. Até então, o vigilante João Batista da Luz, 41 anos, não havia assumido o filho, com medo de contar para a sua família que tinha um herdeiro fruto de uma relação extraconjugal. Com intermédio do projeto, criou coragem para reatar os laços.
- Eu sentia o coração apertado e pensava em procurar meu filho, mas era difícil porque na época eu era casado, então eu escondia - diz.
Agora, o pai quer recuperar o tempo perdido. E promete realizar em breve dois dos maiores sonhos de William: acompanhá-lo em um jogo no Estádio Beira-Rio e ver o menino atuando como zagueiro.
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Lições da África
A pobreza não é sinônimo de ausência e omissão paterna. Ou pelo menos não precisa ser, como comprova a tradição de povos africanos.
Em Moçambique, por exemplo, o quarto país com pior Índice de Desenvolvimento Humano segundo a lista do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento de 2011, é raro ver crianças morando na rua. E uma das explicações para isso é a tradição familiar.
Um dos diferenciais, segundo o pedagogo António Domingos Braço, chefe do departamento de Ciências da Educação e Psicologia na Universidade Pedagógica da cidade da Beira, é o conceito de família alargada. Na tradição do povo Ndau, por exemplo, que vive no interior de Moçambique, sequer existe a palavra tio. Todos os irmãos do pai também são chamados de pai. Na língua nativa, a diferença está nas palavras: enquanto o pai biológico é chamado de Baba Mukhulu (Pai Grande), seus irmãos são chamados de Baba Mudhoko (pai pequeno). Assim, todos compartilham a responsabilidade pelo cuidado dos filhos.
- Aqui, quando se vê uma criança na rua, o questionamento não é só dizer: onde estão os pais. Aqui se pergunta também: onde estão os tios, onde estão os irmãos, onde estão os vizinhos? Todo mundo deve cuidar - explica.
Por isso, casos de crianças abandonadas em Moçambique só costumam ocorrer quando toda a família é dilacerada, como ocorreu no período da guerra civil moçambicana, que durou 16 anos até o acordo de paz, em 1992. Atualmente, o maior desafio é a Aids, que mata 270 pessoas por dia no país.
- Agora temos muitas crianças vivendo com os avós porque já morreram os pais, os irmãos e os vizinhos - conta Braço.
A quantidade de pessoas dormindo nas ruas brasileiras causou estranhamento no professor, que estudou no Brasil por seis anos.
- Me surpreendeu ver como sentem a rua como algo normal. Para nós, é totalmente anormal.