Se você ainda acha que dar trocados na sinaleira é uma forma de ajudar as crianças, chegou a hora de rever os seus conceitos.
Como mostra a história de Felipe, retratada em 16 páginas na Zero Hora de domingo, essa suposta boa ação alimenta a vida nas calçadas e contribui para a degradação da infância.
Com as moedas recolhidas de mão em mão, destinos como o de Felipe (o nome é fictício, para preservar a identidade do garoto, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente) se prendem cada vez mais às ruas, onde estão expostos a riscos como drogas e violência.
- A esmola é o que mantém a pessoa na condição de rua. E é um direito das pessoas viverem em outra condição, de dignidade - afirma a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, defendendo que o sentimento coletivo de solidariedade seja revertido para projetos sociais e fundos de apoio à infância.
Além de não ajudar, a prática atrapalha o trabalho de quem tenta tirar as crianças das calçadas. O desafio é enfrentado cotidianamente pela Comissão Municipal de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Peti). Atualmente, embora as famílias de 2.330 crianças ganhem cerca de R$ 200 do governo federal para que deixem de vender produtos nas ruas, há quem prefira continuar perambulando porque ganha mais nas esquinas.
- A esmola torna mais difícil para as equipes convencerem as crianças dos aspectos negativos da rua. É uma concorrência desleal - diz a coordenadora da comissão do Peti, Júlia Obst, que também integra a coordenação do serviço de Proteção Social Especial de Média Complexidade da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc).
Mudar a cultura é o desafio. Segundo o antropólogo Roberto Da Matta, a prática de dar esmolas foi herdada da tradição católica, mas acabou introjetada no país como uma política de Estado. Em vez de investir em educação de excelência, como fizeram países europeus no século 17, o Brasil manteve a tradição colonial e preferiu apostar em soluções paliativas e programas assistenciais para enfrentar suas mazelas. Na sua visão, o próprio Bolsa-Família seria uma esmola de Estado, e não uma ajuda efetiva:
- Isso tem a ver com a cultura da escravidão. Os senhores emancipavam os escravos pouco antes de morrer, com medo de irem para o inferno. Mas largavam os escravos sem dar reais condições de dignidade.
Gesto pode acarretar em atos de violência no futuro
Da Matta observa que ainda prevalece o ditado de que "quem dá ao pobre empresta a Deus".
- Quem dá esmola só pode esperar um benefício pessoal, a vida daquela pessoa não vai melhorar com uma moeda de R$ 0,50 - analisa.
A psicóloga e investigadora Suzana Braun, do Departamento Estadual da Criança e do Adolescente, sabe o quanto é difícil lidar com essa questão. Mesmo com anos de experiência, ainda sente vontade de atender aos pedidos que recebe nas ruas. Mas aprendeu a dizer não, convicta de que a esmola é uma outra forma de violência.
- Esse adolescente a quem eu dou esmola hoje pode ser o meu agressor amanhã - alerta.
COMO FAZER O BEM
Se você tem vontade de auxiliar quem está em situação de rua, existem outras alternativas mais eficazes. Em vez de esmola, você pode ajudar crianças e adolescentes a ter um futuro diferente:
- Contribua com fundos da criança e do adolescente. Doações para o fundo estadual podem ser feitas pelo site www.podcrianca.rs.gov.br . Na Capital, o caminho é o site www.portoalegre.rs.gov.br (clique em "Secretarias", depois em "Governança". No canto esquerdo, clique em "Funcriança".
- Conheça e colabore com instituições da rede de assistência à criança. Em Porto Alegre, você pode ligar para os Centros de Referência de Assistência Social, que atendem quase 10 mil crianças e adolescentes e suas famílias, em parceria com diferentes instituições conveniadas. Para conhecer os serviços existentes em sua região, acesse www.portoalegre.rs.gov.br/fasc No canto inferior da tela, clique em "Centros de Assistência Social", localizado dentro do quadro "Fale conosco".
- Denuncie casos de violação de direitos das crianças e adolescentes ao Disque 100, da secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (http://www.disque100.gov.br)
- Lembre-se de que esmola não é só dinheiro: dar comida ou comprar produtos vendidos por crianças na rua é uma outra forma de mantê-las expostas aos riscos da rua - e muitas vezes também sustentar quem explora o trabalho infantil.
- Em Porto Alegre, contate o Ação Rua quando vir uma criança em situação de rua: (51) 3289-4994. Os educadores conversam com as crianças e procuram encaminhá-las a programas, mas não as retiram à força da rua.
Veja o vídeo sobre a trajetória errante de Felipe
Em galeria de fotos, veja imagens das andanças de Felipe pelas ruas da Capital