Não fale a verdade. Dói. Esse é o lema de Nova Bréscia, a cidade da mentira, o que é diferente de ser uma cidade de mentira. Em busca de personagens inusitados e curiosidades de municípios gaúchos, a série Beleza Interior destaca hoje Nova Bréscia.
No Vale do Taquari, a 160 quilômetros da Capital e com uma população de 3 mil habitantes, o acanhado município de Nova Bréscia ganhou o respeito pela imaginação delirante de seus trovadores. A cada dois anos, realiza a Copa do Mundo da balela, reunindo candidatos de todo o país, numa engraçada disputa para descobrir quem é o mais mentiroso. O vencedor recebe um Celta zero-quilômetro e a desconfiança por toda a vida, de que não está falando a verdade.
O concurso está completando 30 anos e avalia originalidade, interpretação, conteúdo e respeito ao tempo de apresentação (de cinco a sete minutos). Mais de 50 contadores de histórias lutam com as palavras no último final de semana de abril. A disputa dura duas fases, uma eliminatória no sábado e uma semifinal no domingo, que costuma receber um público de 4 mil pessoas.
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Radialista e comediante de Serafina Corrêa, Edgar Maróstica é o atual campeão do tradicional Festival Nacional da Mentira. Arrebatou o certame logo em sua primeira participação em 2009, com uma performance em dialeto italiano. De um dia para outro, tornou-se o maior mitômano do Brasil. Quando abre a boca, não cogita economizar bateria, seus olhos azuis piscam como farol alto na claridade.
Maróstica tem o nariz de Gepeto (e não do Pinóquio), traços rudes e uma impaciência na voz, demonstra não gostar nem um pouquinho de ser interrompido.
Ele obedece à doutrina da boa mentira, instaurada no Tratado de Versalhes, em 1919: não baixar o olhar, evitar responder o que não foi perguntado, usar algo real para não se perder na história e sustentar o resto da farsa. É assim que vive pregando peças nos familiares e amigos. Mas Maróstica tem um perfil complicado, banquete de traumas para psiquiatras.
- Deveriam me pagar para me atender - desafia.
Veste somente as peças de seu avô morto, descarta comprar roupa e entrar numa loja:
- Seria o equivalente a trair meu antepassado.
Até hoje, aos 46 anos, dorme entre o pai e a mãe, e não arca com nenhuma pontada de remorso. Sem irmão, experimentou um universo mimado, cheio de manias. Uma delas é que não precisa de mulher, não quer casar e nunca namorou.
- Mulher, para quê? Comida, minha mãe faz... - explica.
Precoce, começou a caminhar com quatro meses:
- De tão feio que eu era, ninguém me segurava no colo.
A maior dor foi quando se separou da égua Baixinha, na adolescência. Não desejou amar novamente - arrebentado de saudade daquelas crinas longas e loiras.
- O pai vendeu meu bichinho, não teve coração. E tudo porque me pegou montado nela - recorda.
Decidiu ser humorista após assistir 22 vezes As Sete Faces do Dr. Lao na sessão da tarde. Decorou as falas do filme.
- O mundo todo é um circo. Quando olhamos para um punhado de areia e vemos mais do que areia, vemos um mistério, o circo do Dr. Lao estará lá - diz.
Para não ser cobrado pela vadiagem, completa o orçamento com o jogo do bicho:
- O bicho é uma tradição familiar, desde o século retrasado, em Gênova. Em 1875, meu bisavô Buziari veio ao Brasil com esposa, 21 filhos e um filhote de mula.
O hábito que não cede mesmo é controlar os carros que passam em sua rua. Das 8h às 12h, tira fotografias dos veículos que cruzaram sua residência. São 10 anos atuando de radar informal na pequena janela da água-furtada. A polícia já pediu sua colaboração para solucionar casos. As imagens ficam arquivadas por data na adega.
- Minha brincadeira predileta consiste em adivinhar a cor e o tipo de carro que vai aparecer, descubro qual o modelo pelo som do motor.
Edgar Maróstica é o maior mentiroso do país. Não há como trocar palavras com ele impunemente. Tudo o que escrevi acima é mentira. Fui seu cúmplice, ou seu rival.
A vida real de Edgar Maróstica
Edgar Maróstica não mente fora do palco. É seu mandamento. Ele filosofa:
- Se mentir toda hora, não sei mais o que é a verdade para mentir no palco.
Tampouco gosta de falar alto ou reclamar, mesmo quando tem razão.
Encurvado e tímido, dedica parte do prazer ao recolhimento: mora numa chácara em Serafina Corrêa com a mulher Gislaine Mauer, 28 anos. Tem dois filhos, Johny, 21 anos, e Bruna, 18, da união anterior. Atua como comediante desde 2007, após trabalhar como produtor de eventos e shows em casas noturnas em Guaporé. Não ficou com o Celta que recebeu de premiação, ofereceu-o de presente a Gislaine.
- Ela aguenta meu mau humor para estar sempre de bom humor - ri.
A vitória em Nova Bréscia mudou sua trajetória. Gravou seu primeiro DVD e passou a ser chamado para abrir festas.
- Venho de uma tradição em que divertir é ensinar.
Dos pais, Bruno e Ibania, e da convivência com as três irmãs, guarda a lição de que só o trabalho cura pensamento ruim.
Notícia
Beleza Interior: O maior mentiroso
Fabrício Carpinejar
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