Quando a reportagem de ZH se apresenta a Kayla Harrison, campeã olímpica de judô e principal rival de Mayra Aguiar, ela franze a testa. Não é sinal de descontentamento pela menção a Porto Alegre, cidade da adversária. A judoca apenas busca um nome na memória. Depois de alguns instantes ele vem, acompanhado de um sorriso.
_ "Soudipa"! _ exclama, no português improvisado para citar o clube da porto-alegrense, a Sogipa.
A americana de 26 anos talvez seja o maior obstáculo de Mayra, mas se você é daqueles torcedores que precisam odiar a rival, melhor não conhecê-la. Em cerca de meia hora de entrevista da equipe de judô dos Estados Unidos, no Centro Principal de Mídia dos Jogos Olímpicos, Kayla esbanja descontração, simpatia e um respeito quase reverencial à adversária:
_ Ela sempre é a minha rival mais forte. Uma judoca incrível. É difícil porque estamos lutando uma contra a outra agora, mas daqui a 10 anos provavelmente vou me dar conta de que passei os melhores momentos da minha vida junto com Mayra Aguiar (risos).
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As melhores lembranças de Kayla talvez tenham sido as piores de Mayra. Como na Olimpíada de Londres, quando a gaúcha foi derrotada pela rival na semifinal e a viu subir no degrau mais alto do pódio. Uma decepção que não durou muito, já que se recuperou na repescagem e conquistou o bronze olímpico.
No total, foram incríveis 17 confrontos entre as duas. Kayla leva pequena vantagem de 9 a 8. Não esquece, porém, a derrota na final do Grand Slam de Paris deste ano:
_ Paris é a única prova do circuito mundial que eu nunca venci. Além da Olimpíada, era meu grande objetivo deste ano. A Mayra me venceu na final, com um lindo golpe. Fiquei devastada, mas no dia seguinte estava pronta para treinar ainda mais. É a vantagem de ter uma adversária como ela.
No dia 11 de agosto, quando as judocas da categoria até 78kg entrarem no tatame no Parque Olímpico, Kayla será a inimiga número 1 do público, mas não se abala. Empolga-se com a perspectiva de disputar os Jogos em um país onde o judô é forte. Revela surpresa de ter sido parada no Rio de Janeiro por uma fã que queria uma foto ao seu lado, algo impensável nos Estados Unidos, onde o esporte não é conhecido - Kayla é a única campeã olímpica da história do judô americano. Vibra com a ideia das arquibancadas pulsantes, mesmo que empurrem a rival.
A torcida contra é pouco para abalar alguém que passou pelas dificuldades de sua infância e adolescência. Apresentada ao judô aos seis anos pela mãe, que também era judoca, Kayla ganhou destaque em competições nacionais logo cedo. Os títulos escondiam uma realidade traumática. Quando tinha 13 anos, foi vítima de abuso sexual de seu treinador, Daniel Doyle. Contou a um colega de equipe, que alertou a mãe. Ela denunciou à polícia. Doyle foi preso e condenado a 10 anos de prisão pelo crime. Mas a cicatriz em Kayla permaneceu:
_ Eu sofri com depressão, tive estresse pós-traumático, pensei no suicídio. Apesar de o abuso ter surgido no ambiente do judô, foi o esporte que me manteve viva. Por muito tempo, o treino foi minha única motivação para sair de casa. Eu diria que o judô foi o meu primeiro amor.
Se há algo de romântico nas palavras de Kayla sobre o esporte que a consagrou, nos últimos anos ela tem flertado com outra paixão: o MMA. Amiga de Ronda Rousey, já declarou que considera a possibilidade de pendurar o quimono e trocar o tatame pelo octógono.
Por enquanto, porém, o foco de Kayla está na próxima quinta-feira. Um dia que ela imaginou na cabeça incontáveis vezes, já que é entusiasta da técnica da visualização como forma de preparação psicológica. Ela fecha os olhos e se vê no transporte até a Arena Carioca 2, dentro do tatame vencendo suas oponentes e no alto do pódio, ouvindo o hino americano.
Só não mentaliza com tanta clareza um plano para enfrentar a mesma adversária pela 18ª vez.
_ Eu não sei (risos) _ responde, quando questionada sobre a forma de surpreender uma rival que a conhece tão bem.
_ Mas os meus técnicos sabem. A gente assiste a muitos vídeos e estuda para elaborar uma estratégia _ completa.
Que a simpática Kayla faça o seu melhor, dê trabalho a Mayra, mas que a Olimpíada do Rio não faça parte de sua coleção de melhores momentos passados ao lado da gaúcha. No dia 11 de agosto, o ouro tem destino: a "Soudipa".