Os campeões mundiais e medalhistas olímpicos João Derly, Tiago Camilo, Mayra Aguiar, Felipe Kitadai e outros tantos atletas que passaram pelas mãos de Antônio Carlos Pereira, o Kiko, lembram do técnico aflito, com a calça de abrigo arregaçada até o joelho e aos gritos à beira do tatame – seja em grande competições ou em treinos. Agora, Kiko comemora 30 anos de uma das carreiras mais exitosas do judô, com o nome assinado em três medalhas nos Jogos (as únicas conquistas gaúchas) e em quatro dos seis títulos mundiais do país na modalidade.
Poucos no mundo têm tamanha credencial. Qual o segredo?
– Sou muito duro com as questões fora do tatame – diz o técnico de 48 anos.
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Duro e sargentão. Além da exigência técnica e da disciplina, Kiko se aliava às mães dos judocas para controlar a alimentação e vida social. Com frequência armava jantares aos sábados com dona Vera, mãe de João Derly, e dona Cristina, de Tiago Camilo. Comparecia assobiando como se fosse convidado. Mas ele estava lá com o nobre propósito de bisbilhotar a comida e controlar as saídas dos atletas no fim de semana.
– Eu e o Tiago sabíamos de tudo e aceitávamos os jantares numa boa – conta João Derly.
Como era época de preparação ao Pan Americano do Rio 2007, a estratégia indiscreta deu certo. Derly levantou ouro na categoria meio leve, e Camilo foi campeão entre os médios.
– Ele ligava todo o dia para a minha mãe – diz Derly.
O artifício de fechar tratativas com as mães dos atletas era comum na fase amadora do judô. Até 10 anos atrás, o treinador era um faz-tudo, ocupava-se da preparação técnica, da recuperação muscular, das lesões e do balanceamento da alimentação. Com tanta atribuição assim, uma invasãozinha a mais na família do judoca nem era tão condenável.
– Valia tudo. Essa é a minha parte mais chata, a de vasculhar os passos do pessoal fora do tatame – admite Kiko.
Também valia tudo no treino. A judoca Mariana Martins, então com 17 anos, chegou à Olimpíada de Sydney 2000 forjada pelo singelo trabalho de puxar pneu de caminhão. Kiko amarrava as cordas na cintura da atleta, e ela tinha de arrastar o pneu por 200 metros nos cômoros de areia em uma praia gaúcha. Em outro momento, o técnico colocou Mariana e João Derly dentro de um Vectra e estacionou nas lonjuras do deserto de uma praia:
– Mandei eles descerem e disse: agora empurrem o carro!
Foi a partir da Olimpíada da China, em 2008, que a comissão técnica se encorpou com preparador físico, fisioterapeuta e nutricionista. Mas a cobrança continuou, às vezes até demais, o que deixou muito atleta pelo caminho – e forjou outros tantos até o sucesso.
Kiko começou como atleta no clube Gondoleiros, ainda nos anos 1970. Foi aluno do professor Carlos Matias de Azevedo, ainda hoje surpreso com o antigo aluno.
– É interessante a capacidade dele de se reiventar. Ele continua evoluindo. Não imaginei que fosse levar mais três atletas a outra Olimpíada – elogia Matias (na verdade, são quatro atletas de Kiko nos Jogos do Rio. Além de Mayra Aguiar, Felipe Kitadai e Maria Portela, o técnico formou Taciana Lima, que defende Guiné-Bissau).
Quando chegou à Sogipa, em 1984, Kiko já era faixa marrom e passou às mãos do professor Francisco Vargas. Era judoca apenas razoável, três vezes campeão adulto gaúcho, mas sem destaque nacional. Passou então a dar aulas em clubes e em escolas e mais tarde montou a base de crianças na Sogipa, já atuando como auxiliar-técnico de Vargas, em 1986.
– Ele já tinha o talento de enxergar o atleta competitivo. Isso é talento natural. Eu fiquei 20 anos como professor, depois fui cursar doutorado na Espanha, e o Kiko ficou ensinando por aqui, com sua principal característica: quanto aposta, aposta certo – aponta Vargas, um pioneiro de técnicas inovadoras de judô no esporte gaúcho.
Como dava aulas durante o dia e treinava às 20h, a dupla vida complicou o atleta. O mau desempenho em uma competição sênior em 1988 o fez desistir do tatame:
– Não iria longe como atleta, sou muito pragmático.
Desde então, seus atletas conquistaram mais de 150 medalhas em Grand Slams, Grand Prix e Copas do Mundo, além dos filés dos Jogos e dos campeonatos mundiais.
*ZHESPORTES